segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Limpinho! Limpinho... Limpinho?

Quantos mais dias decorrem desde que o governo de PSD/CDS abandonou o Palácio de São Bento, mais fica a opinião pública esclarecida e convencida que a empolada e galvanizada saída de Portugal do Programa de Assistência Económica e Financeira foi tudo menos limpinha, limpinha, limpinha. A venda do Banif ao grupo Santander por uns míseros 150 milhões de euros e a consequente revelação da admissão da Comissária Europeia da Concorrência que a venda do Banif vinha a ser sucessivamente adiada "para não colocar em causa a saída de Portugal do Programa de Assistência Económica e Financeira" são a machadada final no embelezamento por que Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque e Paulo Portas tanto batalharam. Na admissão da Comissária datada de Dezembro de 2014 ficou ainda a saber-se que a Direção-Geral da Concorrência rejeitou oito planos de reestruturação do Banif desde Dezembro de 2012, altura em que o banco fora recapitalizado pelo Estado português, arrastando a morte lenta da instituição financeira madeirense para o cenário comatoso que o Primeiro-Ministro ontem desligou por fim.

O alerta de que o Governo português se arriscava a vender o Banif a preço de saldo já era antigo. Com a entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2016 de uma nova legislação europeia sobre a liquidação e reestruturação de instituições bancárias que impõe o 'bail-in' – em que obrigacionistas seniores e grandes depositantes (acima de 100 mil euros) são chamados a pagar parte de uma eventual resolução – a urgência de uma resposta para o Banif era conhecida há largos meses. Nada foi feito. A iminente entrada desta legislação criou nas últimas semanas uma situação “contra-relógio” que podia e deveria ter sido evitada. Imperiosamente. Com as eleições à porta, o anterior executivo elegeu deixar a batata quente em banho-maria, temente que a perigosidade financeira e o fim da ilusão de saída limpa do Programa de Assistência Económica e Financeira prejudicasse as suas hipóteses no sufrágio. Agora, com pouco mais do que 3 semanas para se inteirar da situação do Banif e tomar uma decisão, o executivo liderado por António Costa optou pela única óbvia saída à sua frente.

A decisão do Governo acarreta um custo muito elevado para os contribuintes. O próprio Primeiro-Ministro reconheceu. Inclui um apoio público estimado de 2,255 mil milhões de euros para cobrir contingências futuras (489 milhões de euros pelo Fundo de Resolução e 1,766 mil milhões de euros directamente pelo Estado). Em contrapartida, o Banco Santander Totta entrega 150 milhões de euros ao Estado português e fica com a generalidade da actividade do Banif, passando os clientes e as agências do banco madeirense a serem clientes e agências do Banco Santander Totta. O negócio inclui ainda a transferência de activos problemáticos para um veículo de gestão de activos, sendo que no Banif, de ora em diante “banco mau”, permanecerão um conjunto muito restrito de activos (para futura liquidação) e as posições accionistas, dos créditos subordinados e de partes relacionadas. À cabeça, a decisão do Governo implica desde já um orçamento rectificativo e a revisão em alta do défice de 2015 para 4% (contra o défice de 2,7% que o executivo anterior bradava).

O desconforto de António Costa com a decisão de venda da participação do Estado foi evidente na sua declaração ao país. Apenas dois dias antes seis candidatos apresentavam propostas de compra (os espanhóis Santander e Popular, o norte americano Apollo Managment, o fundo norte-americano J.C. Flower e ainda um fundo sino americano ligado ao Haitong Bank que comprou o BESI há um ano). Perante a noticiada urgência para vender do Governo português, os seis candidatos propuseram módicos valores para a aquisição do banco (enquanto certamente esfregavam as mãos de regozijo ante tão grande pechincha). Afinal, não é todos os dias que um banco com depósitos na ordem dos 6,1 mil milhões de euros no fim de Setembro está a preço de saldo. Não obstante os exíguos valores em cima da mesa, a decisão teve que ser prontamente tomada. António Costa afirmou ser a solução "que melhor protege a estabilidade do sistema financeiro português", mas nem o primeiro-ministro pareceu muito convencido disso. Talvez a solução pudesse ter passado por uma integração dos activos bons do Banif na Caixa Geral de Depósitos, onde se manteriam sob o controlo público. O dinheiro a injectar manter-se-ia sob controlo da esfera pública. Todavia, pressionado por prazos cada vez mais curtos, António Costa não teve espaço para ponderar outra solução que não a venda rápida do Banif, a única que no imediato protegia depositantes e trabalhadores, embora seja provável que no futuro estes últimos vejam os seus contratos em risco com a inevitável duplicação de estrutura.


A propositada indefinição do anterior executivo para manter a forçada e espalhafatosa maquilhagem de saída limpa do Programa de Assistência Económica e Financeira, ignorando sucessivos avisos da Comissão Europeia e rejeitando liminarmente várias propostas de reestruturação do Banif, não pode agora passar incólume. É um sério caso de gestão danosa, com claro dolo para o contribuinte português. Já estão prometidas comissões de inquérito parlamentares, mas não podem novamente ficar apenas pelo disse e diz que disse. Não podem novamente terminar na prorrogação da impunidade e do ciclo vicioso financeiro. Já vimos todos uma semelhante história com o Banco Espírito Santo. Já vimos como o homem responsável pelo seu desfecho permanece incólume, apenas reduzido da sua posição de “dono disto tudo” para dono de uma grande fortuna alimentada por negócios obscuros. Não pode repetir-se, nem podem aqueles que adiaram uma situação grave para benefício eleitoral ficar eternamente sob o sigilo da sua imunidade parlamentar. Assim como onde há fumo há fogo, onde há culpa tem que haver culpados. E nenhum está propriamente escondido.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O poder da (des)informação

Mais do que quantidades inimagináveis de dinheiro ou amizades com elementos-chave da sociedade, o verdadeiro poder é a informação de que um dispõe e da quão privilegiada é. Não é por acaso que as nações dispõem de agências secretas onde a informação é a moeda de troca. Não é por acaso que as grandes empresas dispõem de departamentos rodeados pela obscuridade responsáveis pela obtenção de informação sobre a concorrência. Não é por acaso que existe o segredo de justiça. Não é por acaso que o jornalista se compromete com um conjunto de normas e procedimentos éticos, um código deontológico que rege a profissão, marcado pela objectividade, pela imparcialidade, pela confidencialidade e pela verdade e precisão. Deter informação é deter um recurso capaz de envergonhar as capacidades bélicas de um instrumento de guerra. Ora veja-se como Edward Snowden abalou os poderosos Estados Unidos da América com a divulgação de informação classificada, ou como antes dele Julian Assange colocou os Estados Unidos e os seus Aliados de joelhos com a criação do site WikiLeaks e com a peremptória divulgação de relatórios secretos sobre as guerras no Médio Oriente.     

Deter informação é uma responsabilidade considerável, uma responsabilidade que atinge proporções herculanas quando a informação se encontra embebida num forte carácter de exclusividade. Não está para todos, nem todos podem estar para ela. O jornalismo tem a importante função na sociedade de regular esta responsabilidade, procurando a verdade, apurando os factos e impondo a transparência. Mas a mais fundamental função do jornalismo, garantido primeiro o apuramento total de todos os factos, é a ponderação sobre os momentos certos, sobre o instante a partir do qual a informação pode ser divulgada, sob risco de se iniciar uma série de desinformações em catadupa em que a verdade é trocada pela opinião, a imparcialidade pelo sentença e a objectividade pela divagação. Nunca foi tão importante como hoje, nesta era das redes sociais que atravessamos em que tudo demora menos de um milésimo de segundo a se propagar irreversivelmente por todo o lado, ponderar a bondade da informação de que dispomos. O caso José Sócrates é um exemplo fresco nas nossas memórias de que como a ponderação falhou, de como a deontologia jornalística falhou, de como a deontologia judiciária falhou. Sem uma acusação formada e com o processo ainda numa fase de germinação, a opinião pública foi apresentada com informação ferida de objectividade que não pôde ter outro efeito que não fosse um julgamento de carácter imparcial. A ausência de ponderação por parte de todos os intervenientes redundou num precedente grave. Redundou também no reverso da moeda com a decisão de proibição da publicação de notícias relacionados com o caso José Sócrates por parte dos meios de comunicação do grupo Cofina, um ainda mais grave precedente com ramificações que não conseguimos antever.

O caso deveria ter servido novamente de lição sobre o efeito que a informação tem na opinião pública. A TVI não aprendeu. Ao divulgar no passado domingo uma notícia especuladora sobre a situação do Banif voltou a mostrar que o poder da informação é demasiado grande, às vezes até para aqueles que têm por responsabilidade e actividade regulá-la. O efeito foi o que se viu, que se vê ainda. Filas às portas dos balcões do Banif com clientes preocupados. Acções em mínimos nunca vistos. Esclarecimentos pouco claros por parte do Banco. Garantias do Primeiro-Ministro. Garantias de candidatos presidências. Mais notícias feridas de objectividade. A sombra do colapso do BES a pairar irremediavelmente. Embora reconhecendo que a informação divulgada não foi “totalmente precisa e esclarecedora”, a TVI alega que as primeiras informações avançadas em rodapé pela televisão foram posteriormente “cabalmente esclarecidas no jornal '25ª hora', emitido à meia-noite”. É preocupante que o canal remeta para um esclarecimento posterior uma notícia incendiária que passou em rodapé e que considere isso suficiente, mesmo admitindo que nesse entremeio tenha induzido a opinião pública a “conclusões erradas e precipitadas sobre os destinos daquela instituição financeira”. A impunidade não se ganha apenas de peito feito.


À venda e com capital injectado pelo Estado, o destino do Banif era imprevisível. Poderia ser o que a TVI anunciou, ou outro completamente diferente. Agora dificilmente terá outro que não o anunciado. O alarme provocado pela notícia da TVI alastrou-se como um vírus e uma instituição financeira que se encontrava em lenta convalescença não tem maneira de sobreviver a este novo assalto. O banco foi-lhe retirado de baixo dos pés. A confiança acabou. Os depósitos estão a desaparecer de hora para hora e a liquidez é já uma distante memória. No fim do dia, os contribuintes perderão mais um pouco e poderemos regressar ao caos financeiro, com tudo o que isso implica. A notícia da TVI desvalorizou mais o Banif do que um relatório anual de contas com avolumados prejuízos poderia ter feito. Inevitavelmente, há agora um véu de suspeição sobre actuação do canal televisivo. Quero acreditar que não há má-fé nesta actuação, mas só me faz temer ainda mais o poder da informação e da desinformação. Preocupa-me que a informação seja tratada com tanta leviandade. Preocupa-me que informação incompleta e limitada do panorama que apresenta seja exibida como cabal. Preocupa-me que erros como este possam vir a transformar a decisão judicial sobre o grupo Cofina em jurisprudência. A liberdade de informação foi conseguida a fogo e ferros. Não pode agora ser perdida porque não sabemos usá-la, porque não sabemos ponderar sobre a sua idoneidade.            


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Como comer um chapéu em 53 dias

4 de Outubro de 2015. 20 horas. Aníbal instala-se no sofá da sua humilde residência. Liga a televisor. Espreita rapidamente o relógio. Está perto da hora de vazio da sua tarifa bi-horária. Ainda dá para pagar as contas, pensa satisfeito. O televisor ilumina-se com o rosto do vencedor das legislativas. Pedrito é projectado como Primeiro-Ministro. Num raro trejeito, do qual o seu marcado rosto já não parece capaz, Aníbal sorri. “Ganhou mesmo! O Pedrito ganhou!”, espanta-se Maria, instalando-se ao lado do seu esposo com duas fartas tigelas de canja. “Valha-nos Fátima! Maria, valha-nos Fátima!” Maria agarra com força no seu terço e benze-se. “Traz o vinho, Maria. Ainda há um resto no pacote. Traz o vinho Maria. Hoje merecemos.” O vinho que sobrava era pouco, mas foi bastante para tingir de vermelho a canja fresca. Entre sugadas ruidosas, Aníbal e Maria jantam calmamente enquanto acompanham atentamente o desenrolar da noite eleitoral. A noite esfria e Maria levanta-se para ir buscar uma mantinha. Regressa. Enquanto estica bem a mantinha para cobrir completamente as suas e as pernas do marido, Aníbal solta uma gutural gargalhada. “Ai Maria, que choro de tanto rir! Este comentador pensa que o Costa ainda poderá unir-se à esquerda para ser Primeiro-Ministro.” Maria dá uma risada fina de boca fechada. “Mais depressa como um chapéu!” “Não te apoquentes”, acalma Maria. “O Pedrito ganhou e amanhã estás de folga.”

Dois dias mais tarde, Aníbal recebe Pedrito na sua casa maior, perto dos pastéis de nata famosos na zona de que tanto gosta. Pedrito traz-lhe meia dúzia. “Bom rapaz, como sempre”, agradece-lhe. “Ainda estão quentinhos. Ai, que ainda estão bem quentinhos!” Aníbal come o primeiro pastel em duas velozes dentadas. “Senhor Presidente,” começa Pedrito, “os resultados eleitorais foram claros. A PàF ganhou e ganhou bem. Sempre acreditei e agora é verdade. A nossa estratégia funcionou!” “Parabéns! Grande vitória!”, elogia Aníbal entre dentadas ao segundo pastel. “Até o Paulinho esteve bem.” “Aprendeste a domá-lo”, reconhece, virando-se para o terceiro pastel. Pedrito muda de tom e parece preocupado. “Os comunas e os bloquistas estão a planear uma moção de censura, Senhor Presidente.” “Não ligues a esses gajos. São brincadeiras. Fala mas é com o Costa. Não se demitiu e pode estar a aprontar alguma. Dá-lhe qualquer coisa, não vá o diabo tecê-las e ele ir na cantiga dos outros dois.”

Três dias depois, à saída do seu banho da tarde e ainda de roupão desapertado, Aníbal recebe um telefonema agitado. É Pedrito. “Senhor Presidente, o gajo está a gozar connosco. Só fala do plafonamento e enrola nos outros temas. E ainda diz às câmaras que o encontro foi inconclusivo!” “O Costa?”, questiona Aníbal, cobrindo-se finalmente. “Sim! Até já anda a encontrar-se com os outros. Senhor Presidente, não é possível que ele consiga ser Primeiro-Ministro, pois não?” “Respira fundo, Pedrito. Bebe um copo de vinho. Ninguém te vai tirar de São Bento.” “Eles juntos têm mais deputados”, recorda Pedrito num tom ofegante. “Podem aprovar uma moção de censura e entro automaticamente em gestão.” Aníbal franze o sobrolho. Não lhe tinha ocorrido isto. “Não vai acontecer nada. Como o meu chapéu!”, tranquiliza. “Na segunda vou reunir com ele e tiro-lhe essa ideia maluca da cabeça.”

A conversa com Pedrito está atravessada na goela de Aníbal, que passa todo o fim-de-semana aborrecido. Maria prepara rissóis de carne e de camarão e ainda traz do mercado presunto fumado, mas nada serve para acalmar Aníbal. Será mesmo possível que Costa se atreva a unir à esquerda para fazer cair o futuro governo de Pedrito? Aníbal vê-se à beira de um beco constitucional. Não pode voltar a convocar eleições e se uma moção de censura passa e o governo de Pedrito caí, Aníbal não tem muitas alternativas. “Maria, traz-me rennie”, pede a certa altura de Domingo, no fim de uma missa que passou na televisão. Aníbal mal dorme nesta noite. Quando Costa chega a Belém no dia seguinte, Aníbal recebe-o com um aperto de mão gélido. “Nem traz uns pastelinhos”, pensa para com os seus botões. Costa fala das legislativas, da sua visão para o futuro do país e das grandes divergências entre o seu partido e a coligação liderada por Pedrito. Aníbal sorri sempre, mas não ouve nada. Não quer saber das ideias de Costa para nada. “Os resultados eleitorais foram claros”, interrompe por fim, num tom duro. “Só posso ter uma leitura dos votos dos portugueses. Indigitarei o doutor Pedro Passos Coelho, vencedor das eleições, como é tradição.” “Pense bem, Senhor Presidente. Não se precipite”, aconselha Costa à saída. Aníbal faz orelhas moucas. Acredita que a dureza das suas palavras demoverá qualquer insurreição de Costa. Todavia, no dia seguinte, Pedrito volta a fazer um telefonema apoquentado. “Mais uma reunião infrutífera, Senhor Presidente. Não avançámos rigorosamente nada. Ele não quer entrar no nosso jogo. E eu não vou entrar no dele. Não reunirei mais. Peço desculpa, Senhor Presidente. Fiz o que podia. Compreendo se não quiser indigitar-me.” “Não digas disparates, Pedrito! Vão chegar amanhã os resultados finais e depois vou reunir com cada um. Vou pôr água na fervura. Esta rebeldia da esquerda é sol de pouca dura.” Pedrito fica mais reconfortado com as palavras de Aníbal e termina o telefonema num tom optimista, prometendo que vai começar desde logo a desenhar o seu executivo. “Maria, vai buscar-me um chá de camomilha que ainda me dá mais um mal com esta história toda. Traz-me um queijinho também para ajudar o chá a descer.”

Uma semana depois, Aníbal chama todos os partidos políticos à sua casa maior. Conforme recebe cada líder político no seu espaço e os cumprimenta com um aperto de mão seco, Aníbal desvia ansiosamente o olhar para as suas mãos. “Nenhum trás um pastelinho”, nota sempre com desagrado. Vale-lhe o comiserado pastel de Pedrito e a chamuça do Paulinho, um acto de respeito com que não está a contar, mas que até o safa de grande parte da conversa com o parceiro da coligação. Os representantes da esquerda voltam a alertá-lo de que é um desperdício de tempo indigitar Pedrito e que a esquerda tem uma solução de governação estável e douradora. Aníbal odeia ser apanhado nas suas próprias palavras. Mal fica sozinho e livre de mais desconfortáveis reuniões, telefona a Pedrito. “Prepara-te. Amanhã vou tornar oficial e para a semana vens cá assinar os papéis.” “E o Costa?” “Ele não tem coragem. Amanhã deixo mais alguns avisos no meu discurso e deve bastar. Ainda sou Presidente!”

Aníbal comunica a indigitação de Pedrito ao país no dia seguinte. “Em 40 anos de democracia nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças politicas anti-europeístas, isto é, de forças políticas que nos programas eleitorais em que se apresentaram ao povo português defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da união bancaria, do pacote de estabilidade e crescimento, assim como o desmantelamento da união económica e monetária, a saída de Portugal do euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador.” Está feito e estão todos avisados. Aníbal respira finalmente fundo. “Não vou comer nenhum chapéu.” “Maria, prepara a sopa. Poupa no azeite; temos que continuar a apertar as nossas continhas”, sorri com alívio.

Sete dias após a tomada de posse do novo governo, o programa para a governação de Pedrito é entregue na Assembleia e Costa reúne as suas hordas para aprovar a moção de censura. Aníbal está consumido com as notícias. Já nem liga o televisor (assim ainda poupa mais um bocadinho nas continhas do mês). O chumbo do governo de Pedrito é quase certo na semana seguinte. Aníbal nem quer pensar nisto. Faz-lhe doer a cabeça e fica com azia após as refeições, particularmente quando Maria lhe prepara um bacalhau com cebolada. Pedrito liga uma dúzia de vezes durante o fim-de-semana, sempre preocupado com a discussão do programa que vai acontecer logo na segunda-feira. Aníbal promete fazer o que puder para mantê-lo em São Bento, nem que só em gestão. De início, Pedrito parece receptivo à ideia, mas nas últimas chamadas já vai dizendo que não fará nada de jeito com poderes limitados. Provavelmente pela primeira vez, Aníbal apercebe-se que entrou a direito no beco constitucional que pensava ter evitado. Se Pedrito cai e não aceita ficar em gestão, Aníbal não tem outra solução que não seja indicar Costa. Estará completamente encostado à parede. Aníbal mal pode crer. O coração começa a palpitar. “Maria, traz-me um xanaxzinho e uma fatia de bacon só para picar.” Não é que ainda comeria o chapéu?

O governo de Pedrito cai. Aníbal sente-se a ferver. Costa já fala como se fosse o próximo Primeiro-Ministro, mas Aníbal não está para aí virado. Tinha que haver outra solução. Falaria com quem tivesse que falar para encontrar essa alternativa. Começa com os patrões, que reafirmaram o seu apoio a Pedrito (também trazem croquetezinhos) e que se mostram preocupados com o esvaziamento da concertação social e com o fantasma da tributação de lucros. Recebe os sindicatos no dia seguinte. Não lhe trazem nada para petiscar e ainda exigem que indigite Costa o mais rapidamente possível. Mais valia nem tê-los convocado, pensa com irritação. Aníbal não quer saber de urgências. Planeia demorar o tempo necessário para procurar uma alternativa. Mas tem que se afastar daquele antro de intrigas. Logo no início da semana seguinte mete-se num avião com Maria e viaja para a Ilha da Madeira. Sentado à beira da janela só pensa no bolo do caco, na poncha, na espetada regional e nos docinhos de maracujá. Naquele instante, a queda de Pedrito já não é um tema. Não é durante dois dias, dois dias que passa ao sol morno e à boa comidinha quente.    

Tudo o que é bom acaba rapidamente e num piscar de olhos Aníbal já está novamente de regresso à sua casa maior. Na sua senda por uma solução alternativa, chama sete banqueiros. São os homens fortes do dinheiro e vão ter certamente uma posição clara sobre o tema. Conta convencê-los que manter Pedrito em gestão não é um mal tão grande como se pinta em todos os meios de informação, mas os banqueiros surpreendem-no com uma inclinação, ainda que ténue, para a indigitação de Costa. Aníbal afunda-se na sua cadeira. No dia seguinte recebe outras sete personalidades, agora economistas. Estes é que são os homens fortes dos mapas macroeconómicos. Estes é que sabem perfeitamente que a manutenção de Pedrito em gestão é um mal menor. Munidos de chouriços e farinheiras, mostram-se bastante cépticos quanto às propostas de Costa. Aníbal esfrega as mãos de contente. Ainda há uma esperança. No último dia da semana volta a receber os líderes políticos. Aníbal volta a olhar ansiosamente para cada um, mas só o Paulinho traz uma chamuça debaixo do braço. Pela primeira vez, Pedrito não traz nada. “Ora bolas”, estranha. Estranha ainda mais o discurso dele, no qual se mostra resignado e se recusa a ficar em gestão. “Não vale a pena, Senhor Presidente. Não quero ser carne para canhão. Dê lugar ao Costa. Em poucos meses cai e vamos já preparando a campanha.” Aníbal coça a testa fervorosamente. “Como chegámos a isto?… O que vale é que ainda conseguiste desfazer-te das avionetas. Pode ser que agora sirvam melhor comida do que aquelas sandoxas secas que me deram no outro dia.” Pedrito abandona a casa maior cabisbaixo. Aníbal está efectivamente encostado à parede. Pedrito não quer ficar em gestão e um governo da iniciativa de Aníbal será rejeitado prontamente. Resta Costa e apenas Costa. “Traz-me qualquer coisa, Maria. O que houver. Não aguento este vazio na barriga!”

Durante o fim-de-semana, Aníbal começa a escrevinhar o discurso para a inevitável tomada de posse de Costa. É o discurso mais crispado que alguma vez escreveu. Aníbal não consegue controlar as suas palavras. Saem carregadas de dureza, mas Aníbal não altera uma vírgula. Não quer saber. Quando termina o discurso, escreve uma carta a Costa dividida em seis pontos. Não serve para nada, mas talvez ainda consiga arreliar a corja toda. Reúne com Costa na segunda-feira. Vem sorridente e altivo, de quem já está indigitado. Aníbal aperta os seus punhos e morde os seus lábios. No fim da fria conversa, entrega-lhe a carta e manda-o embora. Costa está confuso. Pensou que ia ser indigitado naquele momento. Apressa-se a dar resposta por escrito a tudo no próprio dia. Aníbal nem abre a carta. Rasga-a em vários pedaços e atira-os para o lixo. Tenta ligar a Pedrito, que não atende nenhuma das suas chamadas. Aníbal compreende. Não há mais nada a fazer. No dia seguinte, à hora de almoço, indica por fim Costa para Primeiro-Ministro. “Traz-me canja, Maria. Sem vinho”, lamenta, o apetito perdido.

Na tomada de posse de Costa, Aníbal não consegue esconder todo o seu desconforto, toda a sua ira. Profere o seu discurso tal como o tinha escrito, no tom mais ríspido que consegue ter. Aníbal pode estar fora da luta, mas não se vai calar no tempo que lhe resta. Não vai permitir que Costa tenha uma vida fácil. Na viagem para casa, lembra-se da sua promessa no dia 4 de Outubro. “Maria, hoje janto chapéu”, avisa de forma amargurada. O que vale é que foi espairecer dois dias à Madeira e que o que mais há por lá é chapéus de palha. Trouxe um, se calhar precavendo-se para este fim, e ia comer este mesmo, porquanto era mais fácil de mastigar e ainda tinha um valor nutricional considerável.  



domingo, 15 de novembro de 2015

Somos todos terroristas

A negra sexta-feira 13 de Paris voltou a evidenciar que somos todos terroristas. Após os ataques à liberdade de informação perpetuados ao Charlie Hebdo, Paris voltou a ser palco de um depravado atentado à humanidade. Bombistas-suicidas e ataques com metralhadoras numa série de atentados que prostraram o coração da liberdade, da igualdade da fraternidade à inclemência do Estado Islâmico. As primeiras reacções em França e na Europa são alarmantes. Se a gravidade do ataque ao jornal satírico em Janeiro já tinha provocado um sério revés na reaproximação da cultura ocidental à cultura do médio oriente, a selvajaria do dia 13 deverá marcar a delapidação definitiva, introduzindo uma nova era de desconfiança, de vigilância sem escrúpulos, de acusação barata e da redução e completa eliminação de humanitarismo. Acabou-se a robustez que fez da Europa pós-Segunda Guerra um antro da justiça, da tolerância e da moderação. O terrorismo está a vencer. Está a vergar a Europa a um caminho sinuoso. Mas a vitória que começou em Charlie Hebdo não se esgotou no 13 de Novembro. É preparada há anos para vários anos, patrocinada pela própria Europa e pela inércia da sua acção, reforçada pelo desmazelo dos valores-chave da construção europeia, por uma sociedade que se julgou transcendida e que marginalizou durante anos os que ali não tinham origem. O terrorismo na Europa pertence à própria Europa. Foi na Europa que nasceu e que se espraiou como um cancro severo alimentado por comportamentos nocivos. Foi da Europa que partiu para uma viagem de amadurecimento ao Médio Oriente, à Síria e ao Estado Islâmico, de onde regressou por fim, fortalecido e focalizado, porquanto nesse meio tempo se continuou a discriminar e a ostracizar minorias.      

Não pode surpreender que os terroristas de Paris sejam de nacionalidade francesa ou de outra origem europeia. Admiramo-nos e questionamos o ódio pela própria nação. Temos dificuldade em compreender. Temos dificuldade em aceitar que alguém menosprezado pela sua própria sociedade se revolte tão agressivamente contra ela, sem temor pela sua própria vida, mortalmente frio com o dedo no gatilho ou no botão da cintura de explosivos. Temos dificuldade em ver para além do fundamentalismo cego, do ódio profundo e da insaciável sede de vingança. Perante o horror da carnificina, continuamos a fazer juras de mais desprezo e de mais desconfiança. Instigamos o ódio porque é com ódio que replicamos. Estão milhares de refugiados à nossa porta e estamos tentados a recusar a sua entrada porque tememos que, algures no meio da multidão desesperada que nada tem para além das roupas vestidas, haja um terrorista cheio de oportunidade. E nesse pensamento justamente criamos as condições para um que terrorista surja de verdade; criamos as condições para que uma criança inocente, mal compreendendo o que está a acontecer à sua volta, mal compreendendo porque é que nenhum daqueles homens vestidos militarmente lhes veda a entrada e não concede abrigo nem alimento, se hostilize com o tempo; criamos as condições para que esta criança inocente entre eventualmente na Europa de forma clandestina e se instale num bairro de clandestinos imperado pela pobreza extrema, pela ausência de oportunidades e de compreensão que a sociedade escolhe ignorar; criamos as condições para que o ódio pela sociedade se instale e cresça venenosamente, tornando aquela que fora outrora uma criança inocente às portas da Europa num alvo fácil para predadores de discursos extremistas; criamos as condições para que esta outrora inocente criança, acreditando acerrimamente que exerce a sua justiça, se faça explodir um dia numa multidão de inocentes ou erga uma metralhadora contra tudo o que vem pela frente, porquanto aos seus olhos toldados tudo o que vem pela frente esteve sempre contra ela.        


O nosso medo é a nossa derrota. A nossa indiferença é o nosso terrorismo. Nada justifica Paris. Não há condescendência nem compreensão possíveis. Mas temos que ver para além do ódio. Assistimos à tragédia em directo e multiplicámos até à exaustão os votos de pesar pelas redes sociais, adoptando as suas homenagens oportunamente preparadas de antevéspera. Dispáramos acusações sobre crenças e grupos religiosos que misturamos num só saco. Não nos esforçamos por compreender, por ver para além do ódio. Hoje é notícia, amanhã é reminiscência na cronologia de uma rede social. É mais fácil assim. É mais fácil dirigir o ódio para um grupo demarcado do que procurar a raiz perpetradora. É mais fácil dirigir o ódio do que, promovendo primaveras árabes, ajudar a sua transição, do que prestar atenção aos horrendos atentados em regiões de conflito, do que evitar que corpos de crianças continuem a dar à costa da ilha de Lebos e que barcos carregados se virem sobre si mesmos em águas gélidas e imperdoáveis. É mais fácil dirigir o ódio, não ver para além dele, ser indiferente e assistir à distância. É mais fácil pelo menos enquanto essa distância não é encurtada pelo hediondo terrorismo de quem transformou o seu desprezo constante numa luta armada, da fé cega e da obediência incomensurável. A resposta da coligação internacional provocará eventualmente o fim do Daesh e do seu terrorismo, mas outro movimento de outros actos bárbaros renascerá das suas cinzas enquanto se continuar a alimentar a indiferença pelo velho continente, enquanto se continuar a endurecer o discurso sobre migrantes e refugiados que procuram apenas a oportunidade para viver, para ter uma rotina e poder colocar um pão sobre a mesa a cada dia. Entrámos numa nova era onde todos somos terroristas, uns de armas, outros de comportamento. Não podemos deixar que o terror de hoje do problema de ontem torne o problema de hoje no terror de amanhã. É preciso readoptar os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade que os terroristas de Paris quiseram ver prostrados, agora com determinação ainda mais vincada, por todos e para todos para que o ódio seja por fim erradicado.


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A fénix política portuguesa

Se há algo de positivo que se pode retirar das eleições é que parece ter finalmente renascido em Portugal o pensamento político que estava francamente arredado das preocupações dos portugueses desde a entrada na União Europeia. Curiosamente, este pensamento político renascido em forma de fénix de cinzas troikanas e austeras teve início no momento pós-eleitoral, no momento em que a vitória da maioria transformada em minoria perdeu fulgor para uma surpreende maioria partilhada de esquerda que, descomplexada das inconciliabilidades pré-queda do Muro de Berlim, se apresenta finalmente disposta a um acordo governativo. Curiosamente, o renascimento do pensamento político português teve início no instante em que o eleitorado português perdeu o poder para decidir sobre a composição da nova legislatura então eleita em sufrágio pouco concorrido. Agora que o sufrágio está concluído e decidido, o sobressalto no meio político, nos órgãos de comunicação social e nos abundantes opinion makers é maior do que o que havia no momento pré-eleitoral. Também entre o povo português, abstencionista em 44,14%, há muito sobressalto sobre o estado político. Entre redes sociais e sítios na Internet de órgãos de comunicação social, são inúmeras as opiniões, os desabafos e as acusações da direita à esquerda do espectro político. O desacordo nunca foi tão grande. O nível de insulto nunca foi tão feroz. A forma como os comentadores políticos têm incendiado a opinião pública tem contribuído de forma determinante para o nível de agressividade que se têm observado. É o efeito Bruno de Carvalho nos meandros políticos.   

O incêndio que muitos comentadores têm regado com os seus poderosos agentes aceleradores tem apenas um propósito subjacente: forçar a deliberação de qual ou quais são as forças políticas que vão formar governo. Neste aspecto, é tão legítimo que a PàF queira formar governo como é legítimo que o PS, coligado ou apoiado pelo BE e pela CDU, tenha a mesma intenção. A Constituição Portuguesa permite esta pluralidade de cenários governativos; de outro modo estaríamos ainda na ditadura salazarista. Perante esta pluralidade, cabe ao Presidente da República, e somente a ele, interpretar os resultados eleitorais e as intenções expressas por cada partido com assento parlamentar. É certo que Cavaco Silva partilha a filosofia política da direita portuguesa, que já por mais do que uma vez liderou, mas também é certo que, em fim de legislatura e de ciclo político, quer empossar um governo que dure mais tempo que o meramente necessário para que o sucessor do Palácio de Belém tenha poder para convocar novas eleições. Não obstante, e embora o silêncio ensurdecedor do Presidente da República, a sua teimosia é reconhecida e qualquer que seja a ideia que lhe esteja a latejar na cabeça (inflexão política ou escolha de estabilidade), será essa que tomará e que levará a termo (ou ao termo do seu mandato).

Cavaco Silva sonhava com o melhor dos dois mundos – governo estável de direita –, mas os portugueses confrontaram-no com um mundo fragmentado. Em fim de mandato, nunca a sua decisão foi provavelmente tão decisória nem tão determinante para a forma como se encarará o seu período em Belém no futuro. E enquanto muitos se tentam sobrepor ao seu silêncio, Cavaco Silva assiste atónito enquanto coça a cabeça às reuniões entre partidos, entre sindicatos, as visitas a Bruxelas e a troca de galhardetes em prime time e em notas editoriais. O que é que está a acontecer? Como é que o monstro político despertou subitamente em Portugal? Porque é que os portugueses não facilitaram a sua vida nas urnas? Quase que é preciso mais uma reforma… Um governo estável de direita, à luz da governação dos últimos quatro anos, é improvável e um de esquerda é historicamente complicado. A dor de cabeça de Cavaco Silva é grande e o único paracetemol que lhe pode assistir é António Costa. O grande derrotado das legislativas, segurou-se ao mastro e é agora o grande decisor do diálogo pós-eleitoral. É como a rapariga que ninguém queria pedir a mão mas que depois de se lhe descobrir a riqueza do dote todos querem para noiva, havendo já quem esteja muito aborrecido e frustrado por não lhe aceitar o anel (as expressões de Passos Coelho e Paulo Portas à saída da última reunião eram tremendamente esclarecedoras). Entre acusações de golpe de estado e incentivos à sua revolução, António Costa pavoneia-se como uma carochinha de sorriso e intenções renascidas, como se o João Ratão que lhe caíra no caldeirão de sopa às 20 horas do dia 4 de Outubro não tivesse afinal morrido queimado. A campanha de António Costa começou efectivamente no momento em que o último voto foi colocado na urna e ainda vai a tempo de ser legitimamente indigitado Primeiro-Ministro.


Passos Coelho e Paulo Portas jamais imaginavam tal braço-de-ferro. Abertamente derrotados há um ano, surpreendentemente ressurectos há um mês, inesperadamente em posição de fora-de-jogo há poucos dias, comportam-se como o lobo mau que comeu um boneco em vez da avozinha. É batota, dirão provavelmente nos seus círculos partidários. É política, pensarão com razão os seus opositores. Quem vai à guerra dá e leva, adágio que não perde nenhum fulgor no campo de batalha de Belém nem na tenda de recobro de São Bento.  E enquanto vivemos uma versão bem portuguesa de House of Cards, as presidenciais começam a ganhar tracção, mas o comboio parece já ter chegado à estação de destino com o anúncio oficial da candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa, tão prepotente na sua declaração que motivou despedida especial na TVI e afastou os notáveis do seu partido que já começavam a fila à porta dos Pastéis de Belém. Poderá ser ele a decidir sobre a legislatura a que Cavaco Silva não sabe como tirar o nó. Sob o seu mandato ou de improvável outro, voltaremos quase certamente às urnas, desta vez embebidos em pensamento político que renasceu como uma fénix e que por essa altura rasgará céus. 


domingo, 27 de setembro de 2015

A pílula do dia seguinte da direita e o preservativo da esquerda

Quando o défice público está em cima da mesa há quem opte pela pílula do dia seguinte e quem opte pelo preservativo. A manutenção de um défice em função do Produto Interno Bruto, vulgo PIB, próximo de zero indicia saúde financeira e uma dívida pública controlada. A escolha entre a pílula do dia seguinte e o preservativo é fundamentada no cálculo entre a variação da dívida do Estado (a diferença entre a despesa pública e a receita pública), a variação do valor dos activos do Estado (a diferença entre as compras e as vendas de bens e empresas públicas) e a variação da moeda. No caso português, e porque Portugal pertence à moeda única e não tem uma política monetária própria, a variação da moeda é automaticamente nula. Uma dor de cabeça a menos para uns, uma ferramenta a menos na escolha do método contraceptivo para outros. A redução do défice pode ser então somente alcançada através da redução da despesa pública, do aumento da receita pública (comummente através da receita fiscal), da redução de aquisições e da venda de activos do Estado. Ano após ano, o cálculo do défice é previsto, medido e revisto. Ainda esta semana o Instituto Nacional de Estatística (INE) reviu o défice de 2014 para 7,2% fracassada a venda do Novo Banco. A revisão do INE tem uma leitura imediata: a política fiscal sob a bandeira da austeridade não só não tem sido suficiente para reduzir o défice público como a conclusão do Executivo liderado por Pedro Passos Coelho, mesmo após a alienação da TAP e de outros activos do Estado, ficou refém da venda de um meio-Banco sobre o qual há pouco mais de dois anos não tinha qualquer controlo (tão grande era considerada e promovida a saúde financeira do BES).

Não há todos os anos meios-bancos nem companhias aéreas para vender, pelo que a melhor contracepção está na gestão da despesa pública e da receita pública. À primeira vista, a fórmula é simples: reduzir os gastos públicos e aumentar a receita. Esta tem sido a linha do actual Executivo desde o primeiro dia, cortando pensões, reduzindo os números da função pública e aumentando impostos sobre o rendimento e sobre o consumo. Quatro anos volvidos, com a revisão do défice de 2014 para 7,2% (apenas 2 décimas abaixo do valor registado em 2011 pelo anterior Executivo) e com a previsão para 2015 de 2,7% a precisar de um inopinado milagre para se concretizar (a execução no primeiro semestre fixou-se nos 4,7%), a fórmula falhou. Mas porquê? Se se reduziu a despesa pública e se se aumentou consideravelmente a receita fiscal (só no primeiro semestre de 2015 houve um aumento de 5,5% face ao mesmo período homólogo), como é que o défice continua ainda tão longe das metas traçadas pelo Governo, próximo dos valores com que a legislatura arrancou? Como é que o contraceptivo da austeridade falhou, quando era efusivamente propagandeado que tinha tudo para funcionar?

O valor do défice está por natureza subordinado a um elemento denominador, o PIB, pelo que qualquer redução na expressão em moeda do défice é absorvida pela redução na expressão em moeda do PIB se proporcionalmente igual ou inferior. Na óptica da despesa, o PIB é obtido em função do consumo privado, do consumo público, do investimento e da diferença entre o valor das exportações e o valor das importações. É aqui que a história começa a ficar complicada e se se escaramuça entre a pílula do dia seguinte e o preservativo. Um aumento da receita fiscal para reduzir o défice resulta num menor rendimento disponível das famílias, provocando menor consumo privado e menor valor de investimento, porquanto o valor disponível nos Bancos para créditos às empresas é menor por via da menor capacidade para a poupança das famílias. Por outro lado, a política de austeridade significa ainda que o consumo público é também menor. Desta forma, não obstante a redução na expressão em moeda do défice (mais receita fiscal), a redução na expressão em moeda do PIB (menor consumo público e privado) atenua qualquer efeito de decrescimento do défice dado em sua função. Do primeiro trimestre de 2007 aos primeiros três meses de 2015 – ou seja, em oito anos – o PIB per capita de Portugal caiu 4,4% enquanto o rendimento disponível das famílias per capita desceu 5,5%. É uma bola de neve que não tem fim. Aumenta-se impostos, reduz-se o rendimento das famílias e reduz-se o seu consumo e a sua poupança. Menor poupança e menor poder de compra redunda em menor investimento e capacidade produtiva nas empresas que assim reduzem vencimentos e fazem despedimentos. Menor emprego significa pressão adicional sobre a já aflita Segurança Social. A bola de neve continua colina abaixo e a solução de austeridade que produziu resultados rápidos causa empobrecimento generalizado no médio prazo. O que tem salvado o PIB de uma hecatombe tem sido o volume de exportações das empresas portuguesas que, com a faca da insolvência encostada à goela, foram capazes de, sozinhas, se inovar e transformar para responder aos inúmeros obstáculos.


A alternativa à política contraccionista de austeridade é a política expansionista de promoção do consumo. Uma é promovida pela direita, outra é promovida pela esquerda. No programa político do Partido Socialista, António Costa propõe aumentar o rendimento das famílias como forma de estimular a economia portuguesa. A ideia é que mesmo que o défice expresso em moeda aumente com a menor captação de receita fiscal e com a maior despesa pública (menos impostos e mais subsídios e pensões), o aumento do poder de compra e da poupança reverterá num PIB superior e um défice em sua função menor desde que a evolução positiva do PIB seja sempre superior à evolução negativa do défice. A dificuldade de uma política expansionista como esta é que os seus efeitos não são imediatos. Enquanto a política de austeridade colhe resultados no espaço de um ano, a política de promoção do consumo demora tempo a desenvolver-se e amadurecer-se. Não obstante, e embora os números da execução orçamental fiquem no vermelho durante algum tempo, o rendimento das famílias é imediatamente superior, havendo lugar a mais possibilidades, a menor pobreza e a maior qualidade de vida. A política de austeridade é a pílula do dia seguinte tomada de emergência para resolver o défice, enquanto a política de consumo é o preservativo que, com o tempo, previne. Daqui a uma semana é esta escolha que está em cima da mesa. À esquerda o preservativo e à direita a pílula do dia seguinte. O maior receio é que se o método contraceptivo não for desta vez bem escolhido, PàF… faz-se Chocapic.


sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Caros refugiados,

Por favor, já chega. Basta! Parem de bater às nossas costas e às nossas fronteiras de forma atabalhoada. Temos consciência da dimensão do vosso problema e estamos a resolvê-lo com a melhor velocidade e com completo empenho. Os nossos líderes vão reunir-se já no próximo dia 14 de Setembro para encontrar soluções para o vosso flagelo. Não falta muito. Não desesperem. Há tempo. Confiem, a Europa permanece fiel aos princípios da sua edificação e ao seu código de moral. Considerem, por exemplo, a resolução do conflito ucraniano e a da crise da dívida grega. Quando um ameaçava a duradoura estabilidade e quando outro começava a contaminar economias, actuou-se rapidamente e deu-se fim ao problema. Agora está tudo bem. A evidência dessa actuação é que já pouco ou nada se tem ouvido sobre esses temas. Só pode ser porque ficaram resolvidos e bem resolvidos.

Soluções de circunstância que meramente cortam folhas podres e falham cortar o mal pela raiz não são adágio da comum solução europeia. A Europa digere qualquer desafio até ao tutano, até não haver mais nenhum tema debaixo de nenhuma pedra. Confiem que mal os líderes europeus arregacem as mangas burocráticas e metam mãos à obra não haverá mais qualquer naufrágio no Mediterrâneo, não haverá mais qualquer corpo a dar às belas praias da costa sul, de velhos e de novos, de mães e de filhos. Confiem e tomem as vias legais e esqueçam os comboios em Budapeste e no Canal da Mancha e os barcos nas ilhas gregas. Ignorem aqueles muros ali construídos. Não há bloqueios e queremos-vos cá. Começámos por querer a vossa Primavera Árabe. Mesmo que à distância e unicamente com palavras de incentivo, ajudámos-vos a depor ditadores e opressores e a reconstruir as vossas sociedades. Dir-me-ão agora que o Estado Islâmico tomou conta dos vossos territórios, das vossas vilas, das vossas casas, que tem vindo a aterrorizar e ameaçar-vos com armas, facas, fogo e propaganda. Dir-me-ão que nada fizermos e que por isso fogem para cá. Compreendemos. Venham todos. A seu tempo daremos resposta ao Daesh. Não há pressa. Ainda não estão à nossa porta como vocês.

A Europa está de braços abertos para receber-vos. Passem só por cima daquele muro ou por baixo daquele arame farpado que serve para manter afastados animais selvagens. Há bens e comida em abundância para todos. Entrem sempre. Mas não venham para Portugal. Aqui há excesso de população e temos pouco espaço para nós. Não precisamos de mais população activa para equilibrar as contas da nossa Segurança Social, que tem estado de saúde. Admito que há algum espaço no interior do país, em vilas e aldeias em vales nas montanhas. Mas não vão para lá. A população idosa que lá habita prefere continuar sozinha, no seu silêncio, na morosidade da sua rotina, no seu predilecto abandono. As terras são difíceis de revitalizar. Passem sempre a direito da Grécia para a Macedónia para a Europa Central, da Hungria para a Áustria, para a Alemanha e para a França, e de lá para Inglaterra, onde já não podem estragar as férias aos britânicos.


Mas, por favor, já chega. Basta! Parem de bater às nossas costas e às nossas fronteiras de forma atabalhoada. Perturba-nos consideravelmente os relatos das vossas travessias. É que é mesmo aqui à porta de casa e a vizinhança começa a comentar. Agora que já são refugiados e que já não são migrantes, tenham bom senso. Já não vos assumimos como meros transeuntes, que não são de lado nenhum e que não vão para lado nenhum. Confiem que continuaremos a aplicar a Terceira Lei de Newton invertida. Já reagimos ao vosso problema e agora agiremos em conformidade.


terça-feira, 28 de julho de 2015

Cá vem o circo

Antigamente, um circo chegava à localidade com toda a pompa e circunstância. A caravana descia a rua principal com música e folia. Logo à cabeça, os malabaristas e cuspidores de fogo prometiam uma imensidão de animação como aquela população nunca assistira. Repetidamente ouvia-se através dos megafones a data do grande evento. Ao longo do aparatoso cortejo, cada membro do circo esboçava o seu talento, provando tudo aquilo que podia fazer e trazer na esperança de que o público desse o ar da sua graça na colorida tenda que seria montada na periferia da localidade. Um circo é de tradições e, por mais artes e novidades que contenha, os seus destaques são vulgarmente os mesmos. Para o fim do cortejo, respondendo à ânsia da população, lá vinham os leões, os palhaços e os trapezistas sempre muito aguardados. Afinal, fora à sua roda que o circo primeiro se montara e à sua roda que continuaria a girar. De circo para circo, a ânsia da população mudava um pouco. Ora eram os leões, ora os palhaços, ora os trapezistas, quase sempre separadamente, mas pontualmente unidos se desse mais força ao acto e ao circo. E lá o circo se montava à volta daquela ânsia. Para que o circo se pudesse instalar no local que lhe estava geralmente reservado, havia um responsável que aprovava a sua instalação e pedido de actuação. Há circos e circos e o responsável, representante de toda a localidade, prometia autonomia e dava a garantia de que os gostos artísticos da população seriam respeitados. Muitas vezes, todavia, havia responsáveis que se aliavam a um determinado circo, preferindo leões à cabeça em vez daqueles trapezistas ou daqueles palhaços, porquanto afinal tais representantes vinham daqueles mesmíssimos leões e haviam usado a sua força e a do circo para serem escolhidos representantes. De circo para circo, com mais ou menos música, com mais ou menos folia, era sempre assim.

A época é outra, mas o circo continua a vir à localidade. Com pouca música e sem qualquer folia, o circo deste ano foi anunciado para 4 de Outubro. Até à data, a caravana continuará a descer a rua e os foliões continuarão a esboçar os seus talentos e toda uma promessa de actuação no circo que formarão. Nesta fase inicial do cortejo não se sabe ainda qual será o acto ex-líbris à volta de qual o espectáculo se montará. Cada ardina notícia um cartaz diferente, mas o representante só quer mesmo um acto final de ânsia maioritária, de leões, palhaços ou trapezistas, deixando a leve ameaça de que não permitirá que circo algum se monte sem que o cabeça de cartaz seja da vontade da maioria da população. Este ano, contudo, e mantendo fé na sagacidade dos diferentes ardinas, a população está de coração dividido e há tantos que preferem leões como aqueles que preferem palhaços ou trapezistas. Até à hora do grande espectáculo, o cortejo prosseguirá incessantemente para conquistar a vontade da população. Prevêem-se muitas demonstrações de talento e uma luta feroz entre leões, palhaços e trapezistas durante toda a arruada. Os leões dirão que os trapezistas sobem cordas para cair estrondosamente, os trapezistas dirão que os leões queimam o próprio pêlo por não serem bons a saltar por entre arcos e os palhaços dirão que o seu acto é igual ao acto de sempre e que por isso é fiel aos bons princípios, mesmo que leões e trapezistas alertem para a velhice das suas graçolas. Depois haverá os leões que esboçarão actos de trapezismo – e vice-versa – para buscar a ânsia da população que prefere actos nas cordas e nos trapézios. 

O representante mostra-se entusiasmado com o novo circo, mas a população parece fatigada. Afinal, circo atrás de circo, o cortejo é sempre grande e promete muito, mas o espectáculo mal enche as medidas das suas promessas e deixa a população em pior ânimo e ânsia do que aquela que tinha antes. Mas não haverá alternativa ao circo? Será que os actos têm que ser sempre os mesmos? A população parece deveras fatigada e para além de haver aqueles que não sabem escolher entre leões, palhaços e trapezistas, há aqueles que nem vão tirar bilhete para o espectáculo. O representante bem que vai dizendo que o espectáculo é um direito e dever de todos, conquistado com muito esforço e suor – antes nem circo vinha à localidade! –, mas quando o espectáculo é pobre e a desilusão é mais da costumeira, não há cartaz que dê cobro à fadiga da população. Também não abona bom porto que o representante há muito tenha perdido a sua voz e que agora só vá falando através de gestos e sinais de fumo. Valem mais hoje os actos dos leões, dos palhaços e dos trapezistas que as determinações do representante e talvez por isso já nem se dê à maçada. Lá marcou de verdade a data do circo, e nem fez a vontade ao cortejo, mas foi mais por imposição do seu cargo e menos por vontade própria, que sempre gostou muito do circo anterior e vê com muitos maus olhos que outro se instale na localidade. A população já quer um circo novo há muito tempo e já lá vem outro a caminho, mas há mais fadiga do que ânsia nos olhos que vêem o cortejo montar-se. É mais um como o anterior e se calhar não vale o dinheiro da viagem à tenda colorida na periferia.   


quinta-feira, 16 de julho de 2015

Tsipras e os 300

No filme 300 de Zack Snyder, adaptado da banda desenhada do mesmo nome da autoria de Frank Miller e Lynn Varley, o povo grego encontra-se sob um ataque feroz do povo persa, à época principal potência do eixo do Médio Oriente. Liderado por Xerxes, a conquista da totalidade do território grego parece inevitável. Xerxes permanece invencível até ao momento em que encontra um obstáculo no povo espartano, povo que resiste à anexação não obstante a sua pequeneza perante o todo-poderoso exército persa. Com um módico exército de 300 homens liderado pelo rei Leónidas, os espartanos resistem herculeamente à invasão persa numa épica batalha num desfiladeiro acessível apenas por um curto espaço, reduzindo assim consideravelmente a força que os 300 homens de Leónidas vão enfrentando. Centenas de anos volvidos, a Grécia enfrenta novamente uma invasão, não do Médio Oriente, não militarizada, mas económica e europeia, invasão em que as principais armas são mais e mais austeridade para subjugar o povo grego através de cruel pobreza, de cruel falta de qualidade de vida e de cruel impossibilidade de futuro. Nesta versão moderna de 300, o todo-poderoso exército persa é substituído pela tecnocracia do eixo europeu com a Alemanha à cabeça, na voz da chanceler Angela Merkel e do Ministro das Finanças Wolfgang Schäuble. A Grécia resistiu ao eixo. Fez cair o seu governo tecnocrata e substituiu-o pelo Syriza, um partido de extrema-esquerda liderado por Alexis Tsipras e pelo seu Ministro das Finanças Yanis Varoufakis. Durante cinco meses, Tsipras e Varoufakis resistiram à austeridade exigida pelos credores tal como o exército de 300 de Leónidas resistiu à subjugação pelo exército persa. No desfiladeiro económico, Tsipras e Varoufakis foram respondendo às ameaças europeias. Proposta atrás de proposta, foram desfazendo todas as intenções de mais austeridade. Quando os credores alertaram que não havia mais margem de manobra, Tsipras e Varoufakis decidiram-se por um histórico referendo popular que mostrou de forma esmagadora que o povo grego estava do lado dos bravos 300. A vitória previa-se histórica. Tsipras seria imortalizado como um herói moderno, mesmo que sem os abdominais ridiculamente definidos de Leónidas.


Mas algo aconteceu entretanto. Varoufakis abandonou o Governo grego e Tsipras, munido com a força do Oxi no referendo, cedeu em toda a linha às intenções dos credores, subscrevendo um temível pacote de austeridade e uma tamanha subjugação que vai até para além daquela que em referendo o povo grego rejeitou de forma determinante. A proposta inesperadamente assinada por Tsipras passou ao parlamento grego e, simultânea com uma dura manifestação no exterior envolvendo forças policiais e cocktails molotovs, foi aprovada com a oposição de muitos membros do Syriza, incluindo Yanis Varoufakis. As medidas dos credores para o terceiro resgate grego castigam a Grécia pela afronta ao seu poder. Mais do que propor condições técnicas que garantam o cenário económico-financeiro em que a Grécia é capaz de pagar as suas dívidas e os asfixiantes juros, o eixo xerxiano moderno liderado por Merkel e Wolfgang Schäuble quer garantir que não há mais qualquer forma de insurreição na zona euro. O exemplo foi dado. O eixo xerxiano crê que ficou assim provado que a resposta não está na eleição de governos rebeldes ou na tomada de posições extremadas, mas em governos subalternos que cumprem aquela que acreditam piamente ser a solução para todos os males: austeridade. Foi assim com o Governo português. Será assim com qualquer outro governo que se veja a contemplar um cenário de recessão. Em ano de eleições um pouco por toda a Europa, o efeito Syriza morreu. Tsipras não é nenhum redentor. Não mostrou nenhum caminho alternativo à Grécia e à Europa. Tsipras não é Leónidas. Quem é Tsipras, então? No filme 300, Ephialtes é um espartano deformado que pede a Leónidas a sua permissão para se juntar ao exército de 300. Leónidas recusa; Ephialtes sobreviveria pouco tempo em combate. Revoltado, a troco de riqueza, luxo e de uma posição no exército persa, Ephialtes mostra ao todo-poderoso Xerxes um caminho secreto para o desfiladeiro onde Leónidas e os 300 resistem às investidas. Com este conhecimento, Xerxes destrói Leónidas e o valente exército. Tsipras não pode senão ser Ephialtes nesta versão moderna. Trouxe a derrota ao seu próprio povo pelo caminho que ninguém esperava: através da sua completa anuência a todas as determinações dos credores. Mesmo que ainda não o admita, Tsipras passou à tecnocracia e mudou-se para o eixo xerxiano. Os 300 gregos foram derrotados.


segunda-feira, 29 de junho de 2015

Outra vez.

Outra vez a Grécia. O braço de ferro entre a Europa e os helénicos prossegue ferozmente com a troca de palavras e acusações a subir de tom. De um lado, a Europa acusa a Grécia de tornar o sistema monetário europeu refém das pretensões helénicas. Os mercados têm reagido negativamente com descidas acentuadas nas últimas sessões. Do outro lado, o Governo grego acusa a Europa – com os olhos sempre postos na Alemanha – de querer agrilhoar ainda mais o povo grego e de fazer exigências que não se compaginam com a realidade helénica, extenuada depois de todos os sacrifícios feitos nos últimos anos. Recorde-se, aliás, que o eleitorado grego elegeu Alexis Tsipras e o Syriza como forma de mostrar à Europa – e ao Mundo – que bastava. Curiosamente, poucos meses volvidos desde a surpreendente eleição de Tsipras, o povo grego parece preparado para votar a favor das instituições troikianas no referendo que o Primeiro-Ministro convocou subitamente já para o próximo domingo. Ao longo dos vários meses de braço de ferro, os gregos compreenderam que são a parte fraca das negociações e que dificilmente sairão a ganhar. Tsipras quer afastar de si a responsabilidade de subscrever as difíceis condições exigidas pelos credores, condições que, num acto messiânico, se recusou liminarmente a consentir durante a campanha eleitoral. Agora que a conjuntura se agrava, agora que o Governo grego se encontra entre a parede e o fio da navalha – leia-se Merkel e os seus apóstolos –, a solução de Tsipras passou por um acto de ilusionismo, um que parece ter feito parar o tempo e colocado a Europa entre um fôlego e outro. Até serem conhecidos os resultados do referendo, os bancos gregos estarão encerrados e nenhum cidadão helénico pode levantar mais do que 60€ por dia das caixas de multibanco. Os turistas são aconselhados a levar os bolsos bem atestados de euros.

Outra vez nas mãos gregas. Se os eleitores gregos mudarem novamente de ideias e votarem a favor da Europa no referendo do próximo domingo, Tsipras afasta pelo menos em parte a responsabilidade de submeter o povo grego a mais sacrifícios. Mas Tsipras também garante desta forma que se verá arredado do poder, tendo falhando erguer as suas maiores bandeiras eleitorais na haste mais alta de Bruxelas e da União Europeia. Do Grexit ao Tsexit. Abandonadas repentinamente as conversações, os parceiros europeus não tardaram a trazer à rua toda a sua indignação, partilhando com a opinião pública as medidas que serão levadas a referendo grego e relembrando que termina amanhã o prazo para o pagamento de 1,55 mil milhões de euros de dívida. A Grécia já avisou que não terá dinheiro para pagar. O FMI está disposto a adiar. A indignação é dissimulada. Percebe-se em Bruxelas que os helénicos, desgastados e avergados e por mal dos seus pecados, votarão a seu favor no referendo. Tsipras será consequentemente afastado e Varoufakis sairá consigo do Monte Olimpo. Maria Luís Albuquerque avisou à saída da última reunião do Eurogrupo que “estamos numa situação nunca vivida antes”. Por baixo, esfregava as mãos de regozijo. A ministra, Juncker e Merkel.

Outra vez o Estado Islâmico. Outra vez barbáricos atentados contra inocentes. 26 de Junho fica marcado como um novo dia de terror na Tunísia, no Kuwait e em França, com 262 mortos e 385 feridos em três ataques distintos, com diferentes modus operandi. As primeiras investigações dão conta de que os perpetradores dos violentos ataques tinham ligações ao autoproclamado Estado Islâmico, mas ainda não é certo que os três actos tenham ocorrido de forma coordenada. Caso se confirme tal suspeita, o posicionamento do Daesh no eixo geográfico tem que ser necessariamente repensado. O seu alcance será maior do que era considerado e o seu reinado de terror não se estenderá apenas ao Médio Oriente, mas a todo o Mundo. Incompreensivelmente, o Mundo permanece observador, como se o Daesh se tratasse de um transeunte em trânsito de um ponto de esquecimento para outro ponto de esquecimento. Se nada for feito a seu respeito, o Daesh está para ficar e para provocar caos, desordem e carnificina por todo o lado. Na praia do hotel Riu Imperial Marhaba em Port El Kantaoui, perto de Sousse (140 quilómetros a sul de Tunes), aconteceu o mais inimaginável dos três ataques. 38 turistas que desfrutavam o início do Verão num dos mais invejáveis destinos turísticos do Mediterrâneo perderam a vida, incluindo uma portuguesa de 76 anos. Trata-se da primeira vítima portuguesa do Estado Islâmico, à hora errada no sítio errado. Vítima do acaso e do barbárico oportunismo. O autor do atentado, um estudante de mestrado com apenas 23 anos, volta a sintomatizar o alcance social do Estado Islâmico e acresce a dificuldade em prever ataques semelhantes.  

Outra vez tortura animal. Em Mourão, no concelho de Vila Flor, Bragança, a população cumpre anualmente uma horrenda tradição de São João que, pela primeira vez, chegou a conhecimento público. Denominada "Queima do Gato", envolve a colocação de um gato num recipiente de barro colocado num poste a alguns metros de altura. O poste é colocado em chamas, que lavram rapidamente até ao recipiente. Apanhado numa filmagem incógnita, o ritual chocou o país. Tal selvajaria, tal exultação da população perante a dor do animal parecem inconcebíveis. Para a população de Mourão, é tudo normal, faz parte da tradição e a tradição, defendem, é para ser mantida. Mas que seria da nossa sociedade se todas as tradições se mantivessem? Que seria da nossa própria evolução enquanto criaturas racionais se as tradições não se transfigurassem e se adaptassem aos tempos que atravessam, mesmo que significasse a sua completa extinção? As reacções da população de Mourão à polémica são minimamente preocupantes. A braços com a Justiça, a população continua a defender que o animal se encontra bem (é usado há três ou quatro anos no ritual, imagine-se) e afirma que a situação em torno do caso é “ridícula”. A opinião pública levantou-se a uma só voz contra esta tradição. Só é lamentável que a mesma indignação não se verifique noutros contextos quando, ano após ano e até com patrocínio e direito a transmissão televisiva, dezenas de touros são flagelados e torturados em arenas para o divertimento, o regozijo e a sensação de supremacia de um povo que olha de sobranceira. O Daesh, ao menos, mata por crença e por fé cega. Por que tortura este povo?   


Outra vez equidade norte-americana. Antes de mais nada, Indiana Jones é a melhor personagem do cinema numa eleição levada a cabo pela revista Empire. Snap! Numa chicoteada aos estados mais conservadores, por crença na liberdade e na igualdade de direitos, o Supremo Tribunal Norte-Americano aprovou de uma só vez o casamento homossexual em todo o país. A decisão do órgão máximo de Justiça dos Estados Unidos rompeu com a tradição e é já considerada uma medida histórica e outro marco na de outra forma conturbada administração de Obama. Nestes temas, Portugal tem vindo a assumir uma posição de vanguarda, tendo sido um dos primeiros países do Mundo a aprovar o casamento homossexual (o nosso pequeno rectângulo, aliás, foi o segundo a abolir a pena de morte no longínquo ano de 1867). Somos capazes de quebrar tradições e da coragem para aplicar chicoteadas ao vertiginoso ritmo dos Salteadores da Arca Perdida. Falta agora coragem (mais coragem) para compreender a situação grega, para condenar o Estado Islâmico, para castigar maus-tratos animais e para continuar a tomar posições progressistas. Essas, pelo menos, não saem dos cofres do Estado, que parecem estar mesmo cheios segundo as garantias mais recentes. Outra vez cheios.   


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Livremo-nos do verde e do vermelho

Pintemos as cores da TAP de azul. Na semana em que se comemorou o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, livremo-nos do verde e vermelho da nossa bandeira! É como se voltássemos à monarquia. E quanto custa? Uns meros 10 milhões de euros. Soubesse-mos atempadamente que 61% da TAP custava tão pouco e haveria potencialmente um conjunto alargado de compradores portugueses, nem que fossem apenas vencedores do Euromihões (já temos vários no nosso país). Afinal, a privatização que serviria para reduzir a dívida portuguesa (actualmente de aproximadamente 226,276 mil milhões de euros) redundou-se numa nano-redução percentualmente insignificante. Só para se ter uma noção, é uma percentagem ainda menor que a probabilidade de ganhar o Euromilhões. Aliás, se a chave premiada do sorteio de hoje for registada em Portugal, o Governo arrecada automaticamente 25 milhões de euros em impostos, o que corresponde a 2,5 vezes o valor pelo que a TAP foi entregue a David Neeleman. É certo que David Neeleman (aliado a Humberto Pedrosa para contornar a proibição europeia de, por ser estrangeiro, deter individualmente mais de 50% do capital) se compromete a capitalizar a TAP até 488 milhões de euros e que o Governo preferiu uma solução que garante liquidez à companhia aérea a arrecadar uma receita significante. Todavia, o capital que David Neeleman promete alivia muito pouco e mal atira a TAP para fora da falência técnica. Por outro lado, não há também garantias de que o investidor americano nascido no Brasil respeite o caderno de encargos que subscreveu, onde está previsto que partilhe 10% dos lucros – quando um dia os houver – com os cerca de 13 mil funcionários da TAP e que reforce a frota com 53 novos aviões. Falta agora que as autoridades nacionais e europeias de concorrência dêem luz verde à operação. Não há um prazo definido para que o façam, mas o Governo quer que sejam francamente céleres. Há legislativas à porta e se a recém-nomeada Coligação Portugal à Frente não vencer e a operação da TAP não estiver concluída, é provável que tudo volte à estaca zero… e que a TAP volte a ser verde e vermelha.

Podemos pelo menos contar que David Neeleman servirá amendoins num voo da TAP, como gosta de fazer de vez em quando na Azul. A servir “peaners”, como diria Jorge Jesus no célebre inglês que agora reina em Alvalade, onde também reina uma sanguinolência laboral semelhante à que cobre o país de uma ponta à outra. Para criar o espaço para o improvável reino de Jorge Jesus em Alvalade, o presidente dos leões despediu o treinador Marco Silva, fresco da sua vitória sofrida na Taça de Portugal (o primeiro troféu do clube do Sporting em 7 anos), sem qualquer consideração, comiseração e compreensão, alegando uma justa causa que não tem nem pés nem cabeça para evitar pagar a devida indemnização (Marco Silva ainda tinha três anos de contrato). A atitude de Bruno de Carvalho compagina-se com a atitude do patronato português e do estado generalizado do nosso mercado de trabalho, onde proliferam estágios e estagiozinhos, empregos a termo incerto e recibos verdes não retribuídos que dariam para inverter o défice português. Basta uma visita rápida ao blogue Ganhem Vergonha para nos depararmos com um ror de anúncios de emprego falaciosos, mentirosos e oportunistas dirigidos maioritariamente a jovens. Em Portugal despede-se como se quer, contornando leis e bom senso; contrata-se como se quer, oferendo estágios a candidatos com experiência e trabalho gratuito a troca de acumulação de experiência (a mesma que posteriormente dá acesso a um estágio profissionalizante). Ninguém parecia muito atento a isto. Momentaneamente, Marco Silva mudou o status quo e provocou uma epifania colectiva na opinião pública. Até Pires de Lima pediu ao Sporting que tratasse Marco Silva com a dignidade que merece, ao que Bruno de Carvalho instou o ministro da Economia a preocupar-se com as suas taxas e taxinhas e a concentrar-se nos problemas do país. Pires de Lima passou de verde a vermelho num instante.

De verde a cada vez mais vermelho estão as negociações da Grécia com os credores internacionais. O FMI já abandonou as conversações, entendendo que a ponte que separa as pretensões gregas da vontade dos credores é cada vez mais longa. O Grexit poderá estar iminente. De verde a vermelho também passou Joseph Blatter. Pressionado pelas investigações e pelas detenções do FBI a vários dirigentes do organismo mundial de futebol, o presidente da FIFA renunciou ao cargo apenas 4 dias após o livre sufrágio que o reconduziu ao quinto mandato consecutivo. Os Mundiais de 2018 na Rússia e de 2022 no Qatar poderão estar em dúvida por suspeita de fraude; a escolha do país anfitrião para o Mundial de 2026 foi já suspensa. Num desporto que move centenas de milhões, a longa suspeita de corrupção materializou-se finalmente para surpresa de poucos, ou de nenhuns. Talvez somente para o espanto de Joseph Blatter, que realmente pensava que tinha todos os cordelinhos sob o seu controlo. Foi do verde ao vermelho em poucos dias (na verdade, ainda ficará pela liderança da FIFA até pelo menos Dezembro, quando se realizarem as novas eleições). Nas suas veias já não corre o sangue azul do futebol. Quem também perdeu sangue azul foi a Infanta Cristina de Espanha, irmã do rei Filipe VI. O título de Duquesa de Palma de Maiorca foi revogado por Decreto Real na sequência da suspeita de cooperação no escândalo de corrupção e fraude fiscal que envolveu o seu marido. Agora é só Cristiana, como o nome da revista da apresentadora portuguesa da TVI onde Ricardo Quaresma apareceu sem roupa, nem sequer uma pulseira à vista, dando azo a inúmeras montagens que incluíram a troca milionária de Jorge Jesus do Benfica para o Sporting.


Sem pulseira e em Évora continua José Sócrates. Após o Ministério Público ter sugerido que a medida de coacção aplicada ao ex-Primeiro Ministro passasse da prisão preventiva para prisão domiciliária com recurso a pulseira electrónica, José Sócrates fez o juiz Carlos Alexandre saber que se recusaria a usar qualquer dispositivo de localização, uma decisão alegadamente inédita em Portugal. A decisão de José Sócrates fez alguma confusão, mas a sua lógica até que é simples de compreender. Considerando-se inocente, José Sócrates não quer nenhuma benesse daqueles que o colocaram na prisão, mas tão-somente a liberdade total e completa que considera merecer. Aceitar qualquer alívio na sua medida de coacção poderia ser interpretado como algum consentimento de culpa e de fraqueza e José Sócrates, agora e sempre, não quer que ninguém pense sobre si outra coisa para além daquilo que quer que pensem sobre si. Permanecendo em Évora, mantém a vitimização da sua personagem e fortifica a martirização do seu nome. O juiz Carlos Alexandre não esteve com meias medidas, passou rapidamente do verde ao vermelho e deliberou a permanência da medida de coacção, alegando que permanece o risco de perturbação do inquérito e da recolha e conservação da prova, bem como o risco de fuga. António Costa e Pedro Passos Coelho, azulados de cianose, respiraram de alívio: José Sócrates não terá meios à disposição para perturbar a sua campanha às Legislativas. Entretanto, outros passaram novamente a azul. Strauss-Kahn foi absolvido no julgamento por proxenetismo e disse no tribunal que precisava de festas sexuais porque estava sob pressão a tentar "salvar o mundo" da pior crise financeira. Palavra de honra do antigo director do FMI. Já alertava o lendário Sir Christopher Lee, eterno Saruman e Conde Drácula, que o mundo estava cheio de vampiros. Referia-se à indústria do cinema, mas a sua observação é ainda mais universal do que pensava. Há vampiros por todo o lado e não escolhem a cor do sangue.   


terça-feira, 26 de maio de 2015

Kátharsis

Frente a uma plateia cheia no Rivoli que contava com Ramalho Eanes, Sampaio da Nóvoa prometeu no Porto que, a ser eleito Presidente da República, será “prudente e rigoroso no uso dos poderes” e que não fará da “omissão [o seu] estilo, da ausência um método, do silêncio um resguardo". Sampaio da Nóvoa promete ser a matéria para a antimatéria de Cavaco Silva. Não contem pois com o ex-reitor para segurar em bacalhaus em visitas oficiais à Noruega. Sampaio da Nóvoa parece não ter concorrência neste momento. A bancada da direita ainda não produziu qualquer candidato. É expectável que a coligação de Governo apresente o seu braço forte até às Legislativas, mas até lá Sampaio da Nóvoa vai ganhando terreno, desbravando e lavrando calmamente apoios e elogios. No Rivoli, deixou cinco importantes compromissos: [1] promoção de uma nova visão geoestratégica de Portugal, [2] empenho na construção europeia, sem austeridade e medidas que retirem soberania sem a realização de um referendo, [3] definição de uma estratégia de valorização dos jovens que permita injectar vitalidade na economia e na criação de riqueza, [4] luta pelo Estado social, contra a pobreza e as desigualdades e [5] garantia do normal funcionamento das instituições democráticas. Sampaio da Nóvoa não será um Presidente passivo. Está pronto para a luta. Só precisa de um adversário, que poderá ser Rui Rio… ou Marcelo Rebelo de Sousa… ou Pedro Santana Lopes... ou nenhum destes. Não é a principal preocupação da coligação neste momento.

A preocupação da coligação é a venda da TAP e o eterno desejo de revisão constitucional. Maria Luís Albuquerque sugere que uma reforma da Segurança Social só será possível com uma revisão constitucional. Não vale a pena cortar pensões (600 milhões de uma só machadada) enquanto a Constituição Portuguesa continuar a limitá-las. Culpemos pois a Constituição por não permitir o empobrecimento generalizado. Maria Luís Albuquerque percebeu finalmente que o Tribunal Constitucional chumbará qualquer medida que contrarie os princípios constitucionais, como é suposto e essencial que o faça. Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai até Maomé, adágio que se compagina inteiramente com a vontade da Ministra das Finanças. Do que não desiste o Governo é da privatização da TAP. O único investidor português na corrida, Miguel Pais do Amaral, foi afastado por não ter apresentado uma proposta vinculativa. Sobram os consórcios de David Neeleman (dono da Azul) e de Gérman Efromovich (dono da Avianca), o mesmo investidor que em 2012 esteve à beira de conseguir o negócio na primeira tentativa de privatização. Na altura faltaram meios financeiros adequados, agora já há a promessa de 38 novos aviões. Todavia, Gérman Efromovich nem precisará de se afligir muito com a entrega de novas asas. A retaliação O plano exigido pelo Governo para conter os custos da companhia aérea portuguesa provocados pela greve do Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil no início de Maio (cerca de 35 milhões de euros) poderá passar por suprimir rotas, reduzir pessoal e despesas com horas extraordinárias. O negócio poderá ficar uma pechincha para David Neeleman ou para Gérman Efromovich. As reuniões entre o Governo e os investidores arrancam amanhã. Entrevistado pelo Jornal de Negócios, Miguel Pais do Amaral considera que o calendário eleitoral poderá não permitir qualquer vencedor, a não ser que o Governo esteja disposto a fazer cedências para acelerar o processo. Parece já ter começado de facto…      
    
Enquanto o Governo português permite cedências para acelerar algo que não é propriamente urgente ou necessário, o Governo grego, numa situação bem mais urgente – 1,6 mil milhões de euros vencem já no mês de Junho –, recusa-se a fazer cedências. Recusa-se sobretudo a aceitar qualquer forma de austeridade. O Ministro das Finanças Yanis Varoufakis já avisou que a Grécia não aceitará uma cura que é provadamente pior do que a doença. O FMI alertou que não há outro remédio disponível. O bloqueio continua, mas é provável que a Grécia, sem mais apoios e por necessidade extrema, seja vencida. Uma tragédia grega que não conhecerá qualquer catarse. Catarse como a que aconteceu em Espanha durante o fim-de-semana. As eleições autonómicas e municipais mostram um país em entropia política em que os partidos do eixo governamental enfrentam uma crise geracional e os novos partidos, alicerçados em movimentos de cidadãos, lutam para ganhar expressão. É o fim do bipartismo, mas não é em todo o lodo. No Reino Unido, David Cameron venceu as eleições de forma inesperada e expressiva. É já um caso atípico no panorama político europeu. David Cameron receia contágio e deixou o aviso de que referendará nos próximos anos a continuação na europa comunitária. Em resposta, Angela Merkel e François Hollande acordaram propor uma maior integração dos países do euro, mas sem reabrir os tratados da União Europeia, contrariando a vontade do reconduzido primeiro-ministro britânico.

Procura-se uma catarse europeia para as várias tragédias – gregas, e não só – que ameaçam o sonho europeu. Em Portugal, procura-se uma catarse para os casos de violência que têm assolado a sociedade nas últimas semanas, os distúrbios em Guimarães e o horrível assassinato em Salvaterra de Magos à cabeça. Que a PSP já não beneficiava da confiança de grande franja da população era mais do que sabido. A desmedida actuação do subcomissário da PSP de Guimarães após o jogo de futebol que deu o título de campeão ao Benfica fez pouco para inverter a ideia, revigorando na verdade o estereótipo de que os profissionais da PSP são pessoas mal formadas à procura de coagir e de exercer o seu poder. Não, não são todos assim. Mas paga o justo pelo pecador e em Portugal talvez não se ame tanto um adágio como este. O caso de Salvaterra de Magos junta-se à consideravelmente extensa lista de casos recentes que têm indicado um nível de crime bastante alto no país. A nossa percepção desse nível é pelo menos maior, seja pelo mediatismo ou pela violência dos actos. A crise já não serve de pretexto para o aumento da incidência de crimes. Quando jovens tiram vida a outros jovens – e não só –, algo de muito errado está a acontecer na sociedade. É mais do que uma tragédia. É uma calamidade, sem catarse possível.


Calamidade é igualmente a provável destruição da histórica cidade de Palmira, na Síria. Classificadas como Património Mundial da UNESCO, as ruínas arqueológicas com mais de dois mil anos conheceram e resistiram a diferentes civilizações, da helénica à romana e à bizantina, e guardam importantes etapas da História. Agora no controlo do Estado Islâmico, Palmira não deverá sobreviver. Diz muito do estado das coisas. Dois mil anos depois, a provável queda de Palmira mostra que a humanidade evoluiu pouco e que se encontra muito longe de qualquer espécie de iluminação ou transcendência. Muito menos quando continuamos a perder mentes brilhantes. O último foi John Nash, brilhante matemático norte-americano que mudou a economia com a sua Teoria dos Jogos, teoria que mostrou que ambas as partes numa negociação ganham mais do que perdem quando procuram um consenso  – o ponto de equilíbrio – em vez da uma solução individual. Infelizmente, continuamos a procurar soluções que são óptimas para nós e a ignorar soluções que são globalmente favoráveis para todos. Aristóteles teorizou que para se atingir a catarse é primeiro preciso passar-se da felicidade para a infelicidade. A Teoria dos Jogos segue um princípio semelhante para se atingir o ponto de equilíbrio. O pior é que já estamos na infelicidade há tanto tempo que parece já certo que não haverá qualquer catarse ou ponto de equilíbrio. Para a TAP. Para as pensões. Para a Grécia. Para a PSP. Para a Palmira. Para tanta coisa.


terça-feira, 12 de maio de 2015

À sombra da legalidade

A partir de amanhã viverei na sombra da legalidade. Não sei se traz multas ou outras penalizações. Se calhar até vou parar atrás das grades. Quanto mais escrevo, mais incorro em potenciais infracções. Já cá vai uma. Sempre me pontuei pelo cumprimento da Lei, mesmo quando a Lei parece prestar mais desserviços que outra coisa qualquer. A Lei está acima da vontade individual, e até da colectiva, mas uma Lei que não se ergue para servir a população que cobre com o seu vasto e intricado manto de condições, mesmo que totalitária, é inútil e fomenta a desordem. O Acordo Ortográfico de 1990, após ratificações e rectificações, torna-se amanhã obrigatório em Portugal, findo o período de moratória que começou em 2009. Dos países da CPLP que aprovaram o Acordo (Angola e Moçambique ficaram de fora por iniciativa própria), Portugal, que dá o nome, a história e a origem à Língua, é o primeiro a impor aos seus cidadãos um conjunto de alterações maioritariamente despidas de sentido para apaziguar diferenças e divergências naqueles que a adoptaram. Podia dizer-se que o Acordo procura ordem e progresso (pun intended), mas o que se tem assistido nos últimos anos é abonatório de uma realidade bem mais cinzenta do que a que os promotores da iniciativa transformada em Lei pretendem passar. Oficialmente, o Acordo muda as palavras (alegadamente 1,6% em Portugal e 0,5% no Brasil, por exemplo), mas não a pronúncia. Ou seja, a ortografia muda, a fala mantém-se e acentuam-se as desarmonias entre aquilo que é dito, como é dito, e aquilo que é escrito. As tradições linguísticas de cada membro da CPLP manter-se-ão independentemente da quantidade (e qualidade) de acordos que se façam sobre a Língua pois traduzem as idiossincrasias próprias de cada povo, com mais ou com menos intermitências.

Implementar o Acordo Ortográfico foi um contra-senso. Torná-lo obrigatório é ilegítimo. A Língua não é imutável ou imortal. Que o diga o Latim ou o Aramaico. Evolui conforme o povo que a utiliza avança, seja social, económica ou tecnologicamente. Luís de Camões não escrevia “computador” porque não existia no seu tempo e nos não escrevemos “sururgiam” porque o cirurgia de hoje em dia não é a “sururgia” daquela época. Se a História nos tem mostrado que não podemos impor qualquer tipo de evolução (veja-se o capitalismo pré-Segunda Guerra ou o comunismo pré-Muro de Berlim), a evolução linguística não pode também, enquanto pilar da sociedade, ser imposta. Talvez um dia se fosse mesmo escrever “úmido” no lugar de “húmido” ou “fato” no lugar de “facto”; nesta geração, na seguinte, ou dez gerações à frente. Seria natural nessa altura. Ninguém discordaria porquanto todos tinham passado pela transformação sem dela terem tomado nota. Esse é o poder da verdadeira mudança (a que o mundo empresarial tanto tenta replicar): acontecer sem acontecimento. A decisão de implementar este Acordo carece de fundamento histórico. Unificar a Língua também não pode servir de argumento: a Grã-Bretanha vive bem com o seu Britânico e os Estados Unidos com o seu Americano, ambos como vertentes válidas e sólidas do Inglês; a China vive bem com o Mandarim enquanto um grupo diverso de dialectos muito próximos linguisticamente (e é só um país, não obstante a dimensão).

A decisão de implementar este Acordo e de torná-lo obrigatório só pode ter um fundamento: financeiro. Por um lado, abre caminho ao domínio do mercado ainda pouco explorado dos PALOP por editoras portuguesas e brasileiras. Por outro, traduz em claros ganhos o capricho e a cruzada pessoal de um grupo restrito de pseudo-iluminados. Por exemplo, o Prof. João Malaca Casteleiro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, considerado um dos maiores promotores do Acordo, assina um livro intitulado “O Novo Acordo Ortográfico” e esteve igualmente envolvido na elaboração de dicionários conformes ao Acordo Ortográfico publicados pela Texto Editores. No Brasil, António Houaiss, outro ilustre promotor, transformou-se na referência linguística e gramatical brasileira, assinando títulos como o "Dicionário Houaiss", o "Mini Houaiss", o "Meu Primeiro Dicionário Houaiss", o "Dicionário Houaiss de Sinónimos e Antónimos", "Escrevendo pela nova ortografia/Como usar as regras do novo acordo ortográfico da língua portuguesa", entre outros títulos semelhantes. Tudo a título oneroso, naturalmente. O negócio avança a velocidade de cruzeiro. A não ser que aconteça um milagre como o que amanhã também se celebra (tema para outra análise), dificilmente será já travado.

A começar amanhã passaremos a ter duas grafias em cada país ratificador. Uma sem Acordo, marginalizada, e outra com Acordo, empoleirada. O caldo está preparado para o verdadeiro desacordo. Talvez tudo se tivesse resolvido com o debate público e com o escrutínio do povo, com os mestres da Língua e com os especialistas da Gramática. Ou simplesmente com o decorrer da metamorfose natural da Língua. Que resta agora senão permanecer irredutível e legalmente errado? Talvez deva aprender e adoptar a Língua Mirandesa, que essa permanece fiel à sua origem e ninguém ousa tocar-lhe. O que é que vem a seguir? Pastel de nata com caju? Ou o bacalhau com banana frita?


Como nota final, algum food for thought na forma do paradoxo de Epicuro, que primeiro escreveu: Está Deus disposto a evitar o Mal, mas não é capaz? Então não é omnipotente. É capaz, mas não está disposto? Então é malévolo. É igualmente capaz e disposto? Então como é que o Mal existe? Não é nem capaz nem disposto? Então porque é que é Deus? Se se aplicar o mesmo princípio ao Acordo Ortográfico, com base nas intenções da sua Nota Explicativa, eis que resulta: O Acordo Ortográfico está disposto a evitar a divergências linguísticas, mas não é capaz? Então não é unificador. É capaz, mas não está disposto? Então é desviante. É igualmente capaz e disposto? Então como é que as divergências linguísticas permanecem? Não é nem capaz nem disposto? Então porque é que é um Acordo Ortográfico?


domingo, 3 de maio de 2015

Murros de ouro

Floyd Mayweather venceu o “combate do século” em Las Vegas frente ao filipino Manny Pacquiao e em pouco mais de uma hora amealhou uns impressionantes 143 milhões de euros em ingressos, publicidade e direitos televisivos. Cada dia de greve da TAP custa à transportadora área portuguesa uma média de 5 milhões de euros. A cumprirem-se os dez dias de paralisação previstos pelo sindicato dos pilotos, a TAP vai perder cerca de 50 milhões de euros. O valor até nem parece demasiado quando se tem em mente que Floyd Mayweather fez três vezes esse montante num único combate, mas para a TAP, que enfrenta graves problemas de tesouraria há vários anos, qualquer quebra inesperada nas receitas pode pôr em causa a própria operacionalização da companhia. Com tantas e tão recorrentes paralisações, o valor financeiro da marca atribuído pela OnStrategy | Brand Finance caiu 22%, passando de 362 milhões de euros para 284 milhões de euros no mercado. Feitas as contas, a TAP perdeu 78 milhões de euros na sua valorização. Somando ao valor operacional que a companhia espera perder com a greve, a TAP verá 128 milhões de euros a voar para muito longe. Com a derrota, o filipino Manny Pacquiao amealhou 107 milhões de euros. Talvez o que a TAP precisa mesmo é de uns murros de Floyd Mayweather. Seria sempre mais rápido e menos doloroso que a desmoronamento a que vamos assistindo aos poucos. A este ritmo, e a ser concluída a privatização que o Governo prossegue ferozmente (e que torna bandeira dos meses finais da sua legislatura), a TAP vai ser vendida a troco de amendoins. Talvez Floyd Mayweather puxe os cordelinhos à sua recheada bolsa, mas dificilmente se contentaria com algo tão pouco interessante.

Já que dificilmente Floyd Mayweather trocará murros com a TAP, ansiamos que a TAP e os seus pilotos deixem de trocar chapadas. É um espectáculo gratuito que ninguém quer ver, como publicidade indesejada que invade os nossos ecrãs e as nossas caixas de correio, físicas e virtuais (quantas promoções de 1º de Maio é possível existir?). Os pilotos da TAP consideram que o Governo não está a cumprir o acordo assinado em Dezembro de 2014, nem um outro, estabelecido em 1999, que lhes dava direito a uma participação no capital da empresa no âmbito da privatização. Ou seja, a TAP mal voa neste momento porque o Governo não quer dar ainda mais dinheiro a uma classe já endinheirada. A ganância desmedida dos pilotos da TAP é ainda mais indecorosa quando a sua atitude conjunta, liderado pelo seu sindicato, pode colocar a sobrevivência da companhia em risco e implicar o despedimento dos seus milhares de trabalhadores (e o fim, ainda que temporário, de rotas estratégicas para os interesses portugueses). Para os pilotos será sempre fácil arranjar trabalho, mas para os restantes, para as equipas de manutenção, para as equipas de vendas e para as equipas de tudo o resto que suporta a actividade da companhia, será provavelmente o fim da linha no sector de actividade. Não houve qualquer bom senso na marcação da greve, como também não tem havido nos últimos anos em acções semelhantes. Ultimamente, qualquer coisa é motivo para greve. Na maioria dos casos, um diálogo bastaria entre as partes envolvidas para os desacertos serem resolvidos. Mas em Portugal não se dialoga muito. Grita-se mais. Protesta-se mais. A verdade é que não cansa tanto. Dialogar é extenuante. Implica negociar muito e fazer cedências. É mais fácil paralisar. Tanta paralisação tem enfraquecido colectivamente o poder da greve. Já ninguém a leva muito a sério. Autocarros, metros, professores. Mais do mesmo. Lembra a história do Pedro e do Lobo. E tanto temos gritado lobo quando não há nenhum que quando ele vier mesmo ninguém nos vai dar ouvidos. Nem com murros de Floyd Mayweather.


Enquanto a TAP vai ficando por terra, a realeza britânica vai de vento em popa. José Mourinho é o novo rei do futebol inglês e os Duques de Cambridge são pais da única mulher na linha de sucessão ao trono (a quarta na hierarquia). A nova princesa britânica ainda não tem nome, mas já são feitas apostas… e muito dinheiro (mais uma forma para a TAP revigorar a sua tesouraria?). O nascimento real tomou conta da comunicação social um pouco por todo o lado em terras de Sua Majestade. A poucos dias das eleições para o Governo e para a Câmara dos Comuns, os políticos britânicos tiveram finalmente oportunidade para respirar. Afinaram estratégias para o derradeiro sprint e afastaram polémicas. Bastou um nascimento. A imigração tem sido um tema quente no debate político. O UKIP, o Partido da Independência do Reino Unido, que venceu as últimas eleições europeias, quer impor limites à entrada de estrangeiros no país, dando continuidade ao discurso conservador que tem dominado o panorama europeu nos últimos tempos e que tem vindo a conquistar partidários. Só neste fim-de-semana, a Guarda Costeira italiana resgatou quase 3700 migrantes ao largo da costa da Líbia. Mesmo depois do naufrágio que vitimou sete centenas na maior tragédia de sempre no Mediterrâneo, milhares continuam a arriscar a sua sorte. A resposta europeia continua a ser mesma, nem para cima, nem para baixo, enquanto partidos como o UKIP no Reino Unido e como a Frente Nacional em França continuam a crescer e a endurecer os seus discursos. Enquanto a Suíça, que colocou efectivamente no terreno uma política anti-imigração, é eleita o país mais feliz do mundo. O que a Europa precisava mesmo era que Floyd Mayweather viesse dar-lhe uns murros – até daria dinheiro! –, mas a fila já começa a ser extensa e como as coisas estão a ficar talvez não conseguisse passar sequer a fronteira. Nem com aviões da TAP.