terça-feira, 12 de maio de 2015

À sombra da legalidade

A partir de amanhã viverei na sombra da legalidade. Não sei se traz multas ou outras penalizações. Se calhar até vou parar atrás das grades. Quanto mais escrevo, mais incorro em potenciais infracções. Já cá vai uma. Sempre me pontuei pelo cumprimento da Lei, mesmo quando a Lei parece prestar mais desserviços que outra coisa qualquer. A Lei está acima da vontade individual, e até da colectiva, mas uma Lei que não se ergue para servir a população que cobre com o seu vasto e intricado manto de condições, mesmo que totalitária, é inútil e fomenta a desordem. O Acordo Ortográfico de 1990, após ratificações e rectificações, torna-se amanhã obrigatório em Portugal, findo o período de moratória que começou em 2009. Dos países da CPLP que aprovaram o Acordo (Angola e Moçambique ficaram de fora por iniciativa própria), Portugal, que dá o nome, a história e a origem à Língua, é o primeiro a impor aos seus cidadãos um conjunto de alterações maioritariamente despidas de sentido para apaziguar diferenças e divergências naqueles que a adoptaram. Podia dizer-se que o Acordo procura ordem e progresso (pun intended), mas o que se tem assistido nos últimos anos é abonatório de uma realidade bem mais cinzenta do que a que os promotores da iniciativa transformada em Lei pretendem passar. Oficialmente, o Acordo muda as palavras (alegadamente 1,6% em Portugal e 0,5% no Brasil, por exemplo), mas não a pronúncia. Ou seja, a ortografia muda, a fala mantém-se e acentuam-se as desarmonias entre aquilo que é dito, como é dito, e aquilo que é escrito. As tradições linguísticas de cada membro da CPLP manter-se-ão independentemente da quantidade (e qualidade) de acordos que se façam sobre a Língua pois traduzem as idiossincrasias próprias de cada povo, com mais ou com menos intermitências.

Implementar o Acordo Ortográfico foi um contra-senso. Torná-lo obrigatório é ilegítimo. A Língua não é imutável ou imortal. Que o diga o Latim ou o Aramaico. Evolui conforme o povo que a utiliza avança, seja social, económica ou tecnologicamente. Luís de Camões não escrevia “computador” porque não existia no seu tempo e nos não escrevemos “sururgiam” porque o cirurgia de hoje em dia não é a “sururgia” daquela época. Se a História nos tem mostrado que não podemos impor qualquer tipo de evolução (veja-se o capitalismo pré-Segunda Guerra ou o comunismo pré-Muro de Berlim), a evolução linguística não pode também, enquanto pilar da sociedade, ser imposta. Talvez um dia se fosse mesmo escrever “úmido” no lugar de “húmido” ou “fato” no lugar de “facto”; nesta geração, na seguinte, ou dez gerações à frente. Seria natural nessa altura. Ninguém discordaria porquanto todos tinham passado pela transformação sem dela terem tomado nota. Esse é o poder da verdadeira mudança (a que o mundo empresarial tanto tenta replicar): acontecer sem acontecimento. A decisão de implementar este Acordo carece de fundamento histórico. Unificar a Língua também não pode servir de argumento: a Grã-Bretanha vive bem com o seu Britânico e os Estados Unidos com o seu Americano, ambos como vertentes válidas e sólidas do Inglês; a China vive bem com o Mandarim enquanto um grupo diverso de dialectos muito próximos linguisticamente (e é só um país, não obstante a dimensão).

A decisão de implementar este Acordo e de torná-lo obrigatório só pode ter um fundamento: financeiro. Por um lado, abre caminho ao domínio do mercado ainda pouco explorado dos PALOP por editoras portuguesas e brasileiras. Por outro, traduz em claros ganhos o capricho e a cruzada pessoal de um grupo restrito de pseudo-iluminados. Por exemplo, o Prof. João Malaca Casteleiro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, considerado um dos maiores promotores do Acordo, assina um livro intitulado “O Novo Acordo Ortográfico” e esteve igualmente envolvido na elaboração de dicionários conformes ao Acordo Ortográfico publicados pela Texto Editores. No Brasil, António Houaiss, outro ilustre promotor, transformou-se na referência linguística e gramatical brasileira, assinando títulos como o "Dicionário Houaiss", o "Mini Houaiss", o "Meu Primeiro Dicionário Houaiss", o "Dicionário Houaiss de Sinónimos e Antónimos", "Escrevendo pela nova ortografia/Como usar as regras do novo acordo ortográfico da língua portuguesa", entre outros títulos semelhantes. Tudo a título oneroso, naturalmente. O negócio avança a velocidade de cruzeiro. A não ser que aconteça um milagre como o que amanhã também se celebra (tema para outra análise), dificilmente será já travado.

A começar amanhã passaremos a ter duas grafias em cada país ratificador. Uma sem Acordo, marginalizada, e outra com Acordo, empoleirada. O caldo está preparado para o verdadeiro desacordo. Talvez tudo se tivesse resolvido com o debate público e com o escrutínio do povo, com os mestres da Língua e com os especialistas da Gramática. Ou simplesmente com o decorrer da metamorfose natural da Língua. Que resta agora senão permanecer irredutível e legalmente errado? Talvez deva aprender e adoptar a Língua Mirandesa, que essa permanece fiel à sua origem e ninguém ousa tocar-lhe. O que é que vem a seguir? Pastel de nata com caju? Ou o bacalhau com banana frita?


Como nota final, algum food for thought na forma do paradoxo de Epicuro, que primeiro escreveu: Está Deus disposto a evitar o Mal, mas não é capaz? Então não é omnipotente. É capaz, mas não está disposto? Então é malévolo. É igualmente capaz e disposto? Então como é que o Mal existe? Não é nem capaz nem disposto? Então porque é que é Deus? Se se aplicar o mesmo princípio ao Acordo Ortográfico, com base nas intenções da sua Nota Explicativa, eis que resulta: O Acordo Ortográfico está disposto a evitar a divergências linguísticas, mas não é capaz? Então não é unificador. É capaz, mas não está disposto? Então é desviante. É igualmente capaz e disposto? Então como é que as divergências linguísticas permanecem? Não é nem capaz nem disposto? Então porque é que é um Acordo Ortográfico?


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