A partir de amanhã
viverei na sombra da legalidade. Não sei se traz multas ou outras penalizações.
Se calhar até vou parar atrás das grades. Quanto mais escrevo, mais incorro em
potenciais infracções. Já cá vai uma. Sempre me pontuei pelo cumprimento da
Lei, mesmo quando a Lei parece prestar mais desserviços que outra coisa
qualquer. A Lei está acima da vontade individual, e até da colectiva, mas uma Lei
que não se ergue para servir a população que cobre com o seu vasto e intricado
manto de condições, mesmo que totalitária, é inútil e fomenta a desordem. O Acordo
Ortográfico de 1990, após ratificações e rectificações, torna-se amanhã
obrigatório em Portugal, findo o período de moratória que começou em 2009. Dos
países da CPLP que aprovaram o Acordo (Angola e Moçambique ficaram de fora por
iniciativa própria), Portugal, que dá o nome, a história e a origem à Língua, é
o primeiro a impor aos seus cidadãos um conjunto de alterações maioritariamente
despidas de sentido para apaziguar diferenças e divergências naqueles que a
adoptaram. Podia dizer-se que o Acordo procura ordem e progresso (pun intended), mas o que se tem assistido
nos últimos anos é abonatório de uma realidade bem mais cinzenta do que a que os
promotores da iniciativa transformada em Lei pretendem passar. Oficialmente, o
Acordo muda as palavras (alegadamente 1,6% em Portugal e 0,5% no Brasil, por
exemplo), mas não a pronúncia. Ou seja, a ortografia muda, a fala mantém-se e
acentuam-se as desarmonias entre aquilo que é dito, como é dito, e aquilo que é
escrito. As tradições linguísticas de cada membro da CPLP manter-se-ão
independentemente da quantidade (e qualidade) de acordos que se façam sobre a Língua
pois traduzem as idiossincrasias próprias de cada povo, com mais ou com menos
intermitências.
Implementar o Acordo Ortográfico foi um contra-senso.
Torná-lo obrigatório é ilegítimo. A Língua não é imutável ou imortal. Que o
diga o Latim ou o Aramaico. Evolui conforme o povo que a utiliza avança, seja social,
económica ou tecnologicamente. Luís de Camões não escrevia “computador” porque
não existia no seu tempo e nos não escrevemos “sururgiam” porque o cirurgia de
hoje em dia não é a “sururgia” daquela época. Se a História nos tem mostrado
que não podemos impor qualquer tipo de evolução (veja-se o capitalismo pré-Segunda
Guerra ou o comunismo pré-Muro de Berlim), a evolução linguística não pode também,
enquanto pilar da sociedade, ser imposta. Talvez um dia se fosse mesmo escrever
“úmido” no lugar de “húmido” ou “fato” no lugar de “facto”; nesta geração, na
seguinte, ou dez gerações à frente. Seria natural nessa altura. Ninguém
discordaria porquanto todos tinham passado pela transformação sem dela terem
tomado nota. Esse é o poder da verdadeira mudança (a que o mundo empresarial
tanto tenta replicar): acontecer sem acontecimento. A decisão de implementar
este Acordo carece de fundamento histórico. Unificar a Língua também não pode
servir de argumento: a Grã-Bretanha vive bem com o seu Britânico e os Estados
Unidos com o seu Americano, ambos como vertentes válidas e sólidas do Inglês; a
China vive bem com o Mandarim enquanto um grupo diverso de dialectos muito
próximos linguisticamente (e é só um país, não obstante a dimensão).
A decisão de implementar este Acordo e de torná-lo
obrigatório só pode ter um fundamento: financeiro. Por um lado, abre caminho ao
domínio do mercado ainda pouco explorado dos PALOP por editoras portuguesas e
brasileiras. Por outro, traduz em claros ganhos o capricho e a cruzada pessoal de
um grupo restrito de pseudo-iluminados. Por exemplo, o Prof. João Malaca
Casteleiro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, considerado um dos
maiores promotores do Acordo, assina um livro intitulado “O Novo Acordo
Ortográfico” e esteve igualmente envolvido na elaboração de dicionários conformes
ao Acordo Ortográfico publicados pela Texto Editores. No Brasil, António
Houaiss, outro ilustre promotor, transformou-se na referência linguística e gramatical
brasileira, assinando títulos como o "Dicionário Houaiss", o
"Mini Houaiss", o "Meu Primeiro Dicionário Houaiss", o
"Dicionário Houaiss de Sinónimos e Antónimos", "Escrevendo pela
nova ortografia/Como usar as regras do novo acordo ortográfico da língua
portuguesa", entre outros títulos semelhantes. Tudo a título oneroso,
naturalmente. O negócio avança a velocidade de cruzeiro. A não ser que aconteça
um milagre como o que amanhã também se celebra (tema para outra análise), dificilmente
será já travado.
A começar amanhã passaremos a ter duas grafias em
cada país ratificador. Uma sem Acordo, marginalizada, e outra com Acordo,
empoleirada. O caldo está preparado para o verdadeiro desacordo. Talvez tudo se
tivesse resolvido com o debate público e com o escrutínio do povo, com os
mestres da Língua e com os especialistas da Gramática. Ou simplesmente com o
decorrer da metamorfose natural da Língua. Que resta agora senão permanecer
irredutível e legalmente errado? Talvez deva aprender e adoptar a Língua Mirandesa,
que essa permanece fiel à sua origem e ninguém ousa tocar-lhe. O que é que vem
a seguir? Pastel de nata com caju? Ou o bacalhau com banana frita?
Como nota final, algum food for thought na forma do paradoxo de Epicuro, que primeiro
escreveu: Está Deus disposto a evitar o
Mal, mas não é capaz? Então não é omnipotente. É capaz, mas não está disposto?
Então é malévolo. É igualmente capaz e disposto? Então como é que o Mal existe?
Não é nem capaz nem disposto? Então porque é que é Deus? Se se aplicar o
mesmo princípio ao Acordo Ortográfico, com base nas intenções da sua Nota
Explicativa, eis que resulta: O Acordo Ortográfico está disposto a evitar a divergências
linguísticas, mas não é capaz? Então não é unificador. É capaz, mas não está
disposto? Então é desviante. É igualmente capaz e disposto? Então como é que as
divergências linguísticas permanecem? Não é nem capaz nem disposto? Então
porque é que é um Acordo Ortográfico?
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