A negra
sexta-feira 13 de Paris voltou a evidenciar que somos todos terroristas. Após
os ataques à liberdade de informação perpetuados ao Charlie Hebdo, Paris voltou
a ser palco de um depravado atentado à humanidade. Bombistas-suicidas e ataques
com metralhadoras numa série de atentados que prostraram o coração da liberdade,
da igualdade da fraternidade à inclemência do Estado Islâmico. As primeiras
reacções em França e na Europa são alarmantes. Se a gravidade do ataque ao
jornal satírico em Janeiro já tinha provocado um sério revés na reaproximação
da cultura ocidental à cultura do médio oriente, a selvajaria do dia 13 deverá
marcar a delapidação definitiva, introduzindo uma nova era de desconfiança, de
vigilância sem escrúpulos, de acusação barata e da redução e completa eliminação
de humanitarismo. Acabou-se a robustez que fez da Europa pós-Segunda Guerra um
antro da justiça, da tolerância e da moderação. O terrorismo está a vencer.
Está a vergar a Europa a um caminho sinuoso. Mas a vitória que começou em
Charlie Hebdo não se esgotou no 13 de Novembro. É preparada há anos para vários
anos, patrocinada pela própria Europa e pela inércia da sua acção, reforçada
pelo desmazelo dos valores-chave da construção europeia, por uma sociedade que
se julgou transcendida e que marginalizou durante anos os que ali não
tinham origem. O terrorismo na Europa pertence à própria Europa. Foi na Europa
que nasceu e que se espraiou como um cancro severo alimentado por comportamentos
nocivos. Foi da Europa que partiu para uma viagem de amadurecimento ao Médio Oriente,
à Síria e ao Estado Islâmico, de onde regressou por fim, fortalecido e focalizado,
porquanto nesse meio tempo se continuou a discriminar e a ostracizar minorias.
Não pode surpreender
que os terroristas de Paris sejam de nacionalidade francesa ou de outra origem
europeia. Admiramo-nos e questionamos o ódio pela própria nação. Temos
dificuldade em compreender. Temos dificuldade em aceitar que alguém menosprezado
pela sua própria sociedade se revolte tão agressivamente contra ela, sem temor
pela sua própria vida, mortalmente frio com o dedo no gatilho ou no botão da
cintura de explosivos. Temos dificuldade em ver para além do fundamentalismo
cego, do ódio profundo e da insaciável sede de vingança. Perante o horror da
carnificina, continuamos a fazer juras de mais desprezo e de mais desconfiança.
Instigamos o ódio porque é com ódio que replicamos. Estão milhares de
refugiados à nossa porta e estamos tentados a recusar a sua entrada porque tememos
que, algures no meio da multidão desesperada que nada tem para além das roupas
vestidas, haja um terrorista cheio de oportunidade. E nesse pensamento justamente
criamos as condições para um que terrorista surja de verdade; criamos as
condições para que uma criança inocente, mal compreendendo o que está a
acontecer à sua volta, mal compreendendo porque é que nenhum daqueles homens vestidos
militarmente lhes veda a entrada e não concede abrigo nem alimento, se
hostilize com o tempo; criamos as condições para que esta criança inocente entre
eventualmente na Europa de forma clandestina e se instale num bairro de
clandestinos imperado pela pobreza extrema, pela ausência de oportunidades e de
compreensão que a sociedade escolhe ignorar; criamos as condições para que o ódio
pela sociedade se instale e cresça venenosamente, tornando aquela que fora
outrora uma criança inocente às portas da Europa num alvo fácil para predadores
de discursos extremistas; criamos as condições para que esta outrora inocente
criança, acreditando acerrimamente que exerce a sua justiça, se faça explodir um
dia numa multidão de inocentes ou erga uma metralhadora contra tudo o que vem
pela frente, porquanto aos seus olhos toldados tudo o que vem pela frente
esteve sempre contra ela.
O nosso medo é
a nossa derrota. A nossa indiferença é o nosso terrorismo. Nada justifica Paris.
Não há condescendência nem compreensão possíveis. Mas temos que ver para além
do ódio. Assistimos à tragédia em directo e multiplicámos até à exaustão os
votos de pesar pelas redes sociais, adoptando as suas homenagens oportunamente preparadas
de antevéspera. Dispáramos acusações sobre crenças e grupos religiosos que misturamos
num só saco. Não nos esforçamos por compreender, por ver para além do ódio.
Hoje é notícia, amanhã é reminiscência na cronologia de uma rede social. É mais
fácil assim. É mais fácil dirigir o ódio para um grupo demarcado do que
procurar a raiz perpetradora. É mais fácil dirigir o ódio do que, promovendo
primaveras árabes, ajudar a sua transição, do que prestar atenção aos horrendos
atentados em regiões de conflito, do que evitar que corpos de crianças continuem
a dar à costa da ilha de Lebos e que barcos carregados se virem sobre si mesmos
em águas gélidas e imperdoáveis. É mais fácil dirigir o ódio, não ver para além
dele, ser indiferente e assistir à distância. É mais fácil pelo menos enquanto
essa distância não é encurtada pelo hediondo terrorismo de quem transformou o
seu desprezo constante numa luta armada, da fé cega e da obediência incomensurável.
A resposta da coligação internacional provocará eventualmente o fim do Daesh e do
seu terrorismo, mas outro movimento de outros actos bárbaros renascerá das suas
cinzas enquanto se continuar a alimentar a indiferença pelo velho continente, enquanto
se continuar a endurecer o discurso sobre migrantes e refugiados que procuram
apenas a oportunidade para viver, para ter uma rotina e poder colocar um pão
sobre a mesa a cada dia. Entrámos numa nova era onde todos somos terroristas,
uns de armas, outros de comportamento. Não podemos deixar que o terror de hoje
do problema de ontem torne o problema de hoje no terror de amanhã. É preciso
readoptar os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade que os
terroristas de Paris quiseram ver prostrados, agora com determinação ainda mais
vincada, por todos e para todos para que o ódio seja por fim erradicado.
Sem comentários:
Enviar um comentário