sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A fénix política portuguesa

Se há algo de positivo que se pode retirar das eleições é que parece ter finalmente renascido em Portugal o pensamento político que estava francamente arredado das preocupações dos portugueses desde a entrada na União Europeia. Curiosamente, este pensamento político renascido em forma de fénix de cinzas troikanas e austeras teve início no momento pós-eleitoral, no momento em que a vitória da maioria transformada em minoria perdeu fulgor para uma surpreende maioria partilhada de esquerda que, descomplexada das inconciliabilidades pré-queda do Muro de Berlim, se apresenta finalmente disposta a um acordo governativo. Curiosamente, o renascimento do pensamento político português teve início no instante em que o eleitorado português perdeu o poder para decidir sobre a composição da nova legislatura então eleita em sufrágio pouco concorrido. Agora que o sufrágio está concluído e decidido, o sobressalto no meio político, nos órgãos de comunicação social e nos abundantes opinion makers é maior do que o que havia no momento pré-eleitoral. Também entre o povo português, abstencionista em 44,14%, há muito sobressalto sobre o estado político. Entre redes sociais e sítios na Internet de órgãos de comunicação social, são inúmeras as opiniões, os desabafos e as acusações da direita à esquerda do espectro político. O desacordo nunca foi tão grande. O nível de insulto nunca foi tão feroz. A forma como os comentadores políticos têm incendiado a opinião pública tem contribuído de forma determinante para o nível de agressividade que se têm observado. É o efeito Bruno de Carvalho nos meandros políticos.   

O incêndio que muitos comentadores têm regado com os seus poderosos agentes aceleradores tem apenas um propósito subjacente: forçar a deliberação de qual ou quais são as forças políticas que vão formar governo. Neste aspecto, é tão legítimo que a PàF queira formar governo como é legítimo que o PS, coligado ou apoiado pelo BE e pela CDU, tenha a mesma intenção. A Constituição Portuguesa permite esta pluralidade de cenários governativos; de outro modo estaríamos ainda na ditadura salazarista. Perante esta pluralidade, cabe ao Presidente da República, e somente a ele, interpretar os resultados eleitorais e as intenções expressas por cada partido com assento parlamentar. É certo que Cavaco Silva partilha a filosofia política da direita portuguesa, que já por mais do que uma vez liderou, mas também é certo que, em fim de legislatura e de ciclo político, quer empossar um governo que dure mais tempo que o meramente necessário para que o sucessor do Palácio de Belém tenha poder para convocar novas eleições. Não obstante, e embora o silêncio ensurdecedor do Presidente da República, a sua teimosia é reconhecida e qualquer que seja a ideia que lhe esteja a latejar na cabeça (inflexão política ou escolha de estabilidade), será essa que tomará e que levará a termo (ou ao termo do seu mandato).

Cavaco Silva sonhava com o melhor dos dois mundos – governo estável de direita –, mas os portugueses confrontaram-no com um mundo fragmentado. Em fim de mandato, nunca a sua decisão foi provavelmente tão decisória nem tão determinante para a forma como se encarará o seu período em Belém no futuro. E enquanto muitos se tentam sobrepor ao seu silêncio, Cavaco Silva assiste atónito enquanto coça a cabeça às reuniões entre partidos, entre sindicatos, as visitas a Bruxelas e a troca de galhardetes em prime time e em notas editoriais. O que é que está a acontecer? Como é que o monstro político despertou subitamente em Portugal? Porque é que os portugueses não facilitaram a sua vida nas urnas? Quase que é preciso mais uma reforma… Um governo estável de direita, à luz da governação dos últimos quatro anos, é improvável e um de esquerda é historicamente complicado. A dor de cabeça de Cavaco Silva é grande e o único paracetemol que lhe pode assistir é António Costa. O grande derrotado das legislativas, segurou-se ao mastro e é agora o grande decisor do diálogo pós-eleitoral. É como a rapariga que ninguém queria pedir a mão mas que depois de se lhe descobrir a riqueza do dote todos querem para noiva, havendo já quem esteja muito aborrecido e frustrado por não lhe aceitar o anel (as expressões de Passos Coelho e Paulo Portas à saída da última reunião eram tremendamente esclarecedoras). Entre acusações de golpe de estado e incentivos à sua revolução, António Costa pavoneia-se como uma carochinha de sorriso e intenções renascidas, como se o João Ratão que lhe caíra no caldeirão de sopa às 20 horas do dia 4 de Outubro não tivesse afinal morrido queimado. A campanha de António Costa começou efectivamente no momento em que o último voto foi colocado na urna e ainda vai a tempo de ser legitimamente indigitado Primeiro-Ministro.


Passos Coelho e Paulo Portas jamais imaginavam tal braço-de-ferro. Abertamente derrotados há um ano, surpreendentemente ressurectos há um mês, inesperadamente em posição de fora-de-jogo há poucos dias, comportam-se como o lobo mau que comeu um boneco em vez da avozinha. É batota, dirão provavelmente nos seus círculos partidários. É política, pensarão com razão os seus opositores. Quem vai à guerra dá e leva, adágio que não perde nenhum fulgor no campo de batalha de Belém nem na tenda de recobro de São Bento.  E enquanto vivemos uma versão bem portuguesa de House of Cards, as presidenciais começam a ganhar tracção, mas o comboio parece já ter chegado à estação de destino com o anúncio oficial da candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa, tão prepotente na sua declaração que motivou despedida especial na TVI e afastou os notáveis do seu partido que já começavam a fila à porta dos Pastéis de Belém. Poderá ser ele a decidir sobre a legislatura a que Cavaco Silva não sabe como tirar o nó. Sob o seu mandato ou de improvável outro, voltaremos quase certamente às urnas, desta vez embebidos em pensamento político que renasceu como uma fénix e que por essa altura rasgará céus. 


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