terça-feira, 28 de julho de 2015

Cá vem o circo

Antigamente, um circo chegava à localidade com toda a pompa e circunstância. A caravana descia a rua principal com música e folia. Logo à cabeça, os malabaristas e cuspidores de fogo prometiam uma imensidão de animação como aquela população nunca assistira. Repetidamente ouvia-se através dos megafones a data do grande evento. Ao longo do aparatoso cortejo, cada membro do circo esboçava o seu talento, provando tudo aquilo que podia fazer e trazer na esperança de que o público desse o ar da sua graça na colorida tenda que seria montada na periferia da localidade. Um circo é de tradições e, por mais artes e novidades que contenha, os seus destaques são vulgarmente os mesmos. Para o fim do cortejo, respondendo à ânsia da população, lá vinham os leões, os palhaços e os trapezistas sempre muito aguardados. Afinal, fora à sua roda que o circo primeiro se montara e à sua roda que continuaria a girar. De circo para circo, a ânsia da população mudava um pouco. Ora eram os leões, ora os palhaços, ora os trapezistas, quase sempre separadamente, mas pontualmente unidos se desse mais força ao acto e ao circo. E lá o circo se montava à volta daquela ânsia. Para que o circo se pudesse instalar no local que lhe estava geralmente reservado, havia um responsável que aprovava a sua instalação e pedido de actuação. Há circos e circos e o responsável, representante de toda a localidade, prometia autonomia e dava a garantia de que os gostos artísticos da população seriam respeitados. Muitas vezes, todavia, havia responsáveis que se aliavam a um determinado circo, preferindo leões à cabeça em vez daqueles trapezistas ou daqueles palhaços, porquanto afinal tais representantes vinham daqueles mesmíssimos leões e haviam usado a sua força e a do circo para serem escolhidos representantes. De circo para circo, com mais ou menos música, com mais ou menos folia, era sempre assim.

A época é outra, mas o circo continua a vir à localidade. Com pouca música e sem qualquer folia, o circo deste ano foi anunciado para 4 de Outubro. Até à data, a caravana continuará a descer a rua e os foliões continuarão a esboçar os seus talentos e toda uma promessa de actuação no circo que formarão. Nesta fase inicial do cortejo não se sabe ainda qual será o acto ex-líbris à volta de qual o espectáculo se montará. Cada ardina notícia um cartaz diferente, mas o representante só quer mesmo um acto final de ânsia maioritária, de leões, palhaços ou trapezistas, deixando a leve ameaça de que não permitirá que circo algum se monte sem que o cabeça de cartaz seja da vontade da maioria da população. Este ano, contudo, e mantendo fé na sagacidade dos diferentes ardinas, a população está de coração dividido e há tantos que preferem leões como aqueles que preferem palhaços ou trapezistas. Até à hora do grande espectáculo, o cortejo prosseguirá incessantemente para conquistar a vontade da população. Prevêem-se muitas demonstrações de talento e uma luta feroz entre leões, palhaços e trapezistas durante toda a arruada. Os leões dirão que os trapezistas sobem cordas para cair estrondosamente, os trapezistas dirão que os leões queimam o próprio pêlo por não serem bons a saltar por entre arcos e os palhaços dirão que o seu acto é igual ao acto de sempre e que por isso é fiel aos bons princípios, mesmo que leões e trapezistas alertem para a velhice das suas graçolas. Depois haverá os leões que esboçarão actos de trapezismo – e vice-versa – para buscar a ânsia da população que prefere actos nas cordas e nos trapézios. 

O representante mostra-se entusiasmado com o novo circo, mas a população parece fatigada. Afinal, circo atrás de circo, o cortejo é sempre grande e promete muito, mas o espectáculo mal enche as medidas das suas promessas e deixa a população em pior ânimo e ânsia do que aquela que tinha antes. Mas não haverá alternativa ao circo? Será que os actos têm que ser sempre os mesmos? A população parece deveras fatigada e para além de haver aqueles que não sabem escolher entre leões, palhaços e trapezistas, há aqueles que nem vão tirar bilhete para o espectáculo. O representante bem que vai dizendo que o espectáculo é um direito e dever de todos, conquistado com muito esforço e suor – antes nem circo vinha à localidade! –, mas quando o espectáculo é pobre e a desilusão é mais da costumeira, não há cartaz que dê cobro à fadiga da população. Também não abona bom porto que o representante há muito tenha perdido a sua voz e que agora só vá falando através de gestos e sinais de fumo. Valem mais hoje os actos dos leões, dos palhaços e dos trapezistas que as determinações do representante e talvez por isso já nem se dê à maçada. Lá marcou de verdade a data do circo, e nem fez a vontade ao cortejo, mas foi mais por imposição do seu cargo e menos por vontade própria, que sempre gostou muito do circo anterior e vê com muitos maus olhos que outro se instale na localidade. A população já quer um circo novo há muito tempo e já lá vem outro a caminho, mas há mais fadiga do que ânsia nos olhos que vêem o cortejo montar-se. É mais um como o anterior e se calhar não vale o dinheiro da viagem à tenda colorida na periferia.   


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