Antigamente, um circo chegava à localidade com
toda a pompa e circunstância. A caravana descia a rua principal com música e
folia. Logo à cabeça, os malabaristas e cuspidores de fogo prometiam uma
imensidão de animação como aquela população nunca assistira. Repetidamente ouvia-se
através dos megafones a data do grande evento. Ao longo do aparatoso cortejo, cada
membro do circo esboçava o seu talento, provando tudo aquilo que podia fazer e
trazer na esperança de que o público desse o ar da sua graça na colorida tenda que
seria montada na periferia da localidade. Um circo é de tradições e, por mais artes
e novidades que contenha, os seus destaques são vulgarmente os mesmos. Para o
fim do cortejo, respondendo à ânsia da população, lá vinham os leões, os
palhaços e os trapezistas sempre muito aguardados. Afinal, fora à sua roda que
o circo primeiro se montara e à sua roda que continuaria a girar. De circo para
circo, a ânsia da população mudava um pouco. Ora eram os leões, ora os
palhaços, ora os trapezistas, quase sempre separadamente, mas pontualmente unidos
se desse mais força ao acto e ao circo. E lá o circo se montava à volta daquela
ânsia. Para que o circo se pudesse instalar no local que lhe estava geralmente
reservado, havia um responsável que aprovava a sua instalação e pedido de
actuação. Há circos e circos e o responsável, representante de toda a
localidade, prometia autonomia e dava a garantia de que os gostos artísticos da
população seriam respeitados. Muitas vezes, todavia, havia responsáveis que se
aliavam a um determinado circo, preferindo leões à cabeça em vez daqueles
trapezistas ou daqueles palhaços, porquanto afinal tais representantes vinham
daqueles mesmíssimos leões e haviam usado a sua força e a do circo para serem
escolhidos representantes. De circo para circo, com mais ou menos música, com
mais ou menos folia, era sempre assim.
A época é outra, mas o circo continua a vir à localidade.
Com pouca música e sem qualquer folia, o circo deste ano foi anunciado para 4 de
Outubro. Até à data, a caravana continuará a descer a rua e os foliões
continuarão a esboçar os seus talentos e toda uma promessa de actuação no circo
que formarão. Nesta fase inicial do cortejo não se sabe ainda qual será o acto
ex-líbris à volta de qual o espectáculo se montará. Cada ardina notícia um
cartaz diferente, mas o representante só quer mesmo um acto final de ânsia maioritária,
de leões, palhaços ou trapezistas, deixando a leve ameaça de que não permitirá
que circo algum se monte sem que o cabeça de cartaz seja da vontade da maioria
da população. Este ano, contudo, e mantendo fé na sagacidade dos diferentes
ardinas, a população está de coração dividido e há tantos que preferem leões
como aqueles que preferem palhaços ou trapezistas. Até à hora do grande
espectáculo, o cortejo prosseguirá incessantemente para conquistar a vontade da
população. Prevêem-se muitas demonstrações de talento e uma luta feroz entre leões,
palhaços e trapezistas durante toda a arruada. Os leões dirão que os trapezistas
sobem cordas para cair estrondosamente, os trapezistas dirão que os leões
queimam o próprio pêlo por não serem bons a saltar por entre arcos e os
palhaços dirão que o seu acto é igual ao acto de sempre e que por isso é fiel
aos bons princípios, mesmo que leões e trapezistas alertem para a velhice das
suas graçolas. Depois haverá os leões que esboçarão actos de trapezismo – e
vice-versa – para buscar a ânsia da população que prefere actos nas cordas e
nos trapézios.
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