quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Do Brexit ao Amexit

O Brexit deveria ter servido de aviso. Contrariando todas as sondagens, o Não à Europa venceu. De forma sorrateira, o discurso populista, ferido de demagogia, espraiou-se pela população britânica como um cancro metastizado; não se fez sentir, não causou dor nem sofrimento. E como um cancro que faz chegar o seu toque negro aos recantos mais frágeis do corpo humano, o discurso populista promovido pelo pensamento extremista tomou conta das regiões menos favorecidas da ilha britânica, das franjas mais pobres e mais penalizadas pelo movimento globalizante que marcou a última metade do século XX e que caracteriza o arranque do século XXI. Nestes meios pequenos, isolados, regiões do interior onde outrora predominou indústria e agricultura, o sentimento antiglobalização adolesceu conforme o emprego se tornou mais tecnológico e se moveu para as regiões litorais e para as grandes metrópoles. Esta nova forma de emprego, associado ao internet of things, criou novas oportunidades e mudou radicalmente o mundo. Mas enquanto enaltecemos a mudança e nos entretivemos com todas as possibilidades que a internet nos proporcionou, enquanto nos abstraímos nos smartphones e na panóplia de redes sociais, as populações daquelas regiões, populações com menor grau de formação, rejeitaram amplamente a mudança. Enquanto louvámos as novas oportunidades tecnológicas, lamentaram a deslocação das indústrias e da agricultura para outras regiões do planeta, terras de mão-de-obra barata; lamentaram o desemprego que se originou e a perda do estilo de vida e do conforto financeiro que tinham.

                Ao mesmo tempo que estas mudanças aconteceram, o Reino Unido e os países da Europa abriram as suas fronteiras ao Mundo, à livre circulação de bens e de pessoas. E com isso assistiu-se a movimentos migratórios com foco nas grandes cidades europeias, com Londres à cabeça, acrescentando pressão sobre o frágil emprego nas franjas mais pobres e menos formadas. Quando, no Reino Unido, se chamou a população às urnas para dizer Sim ou Não à continuação do sonho europeu, o Não ganhou e deixou o Mundo de queixo caído, perplexo perante um resultado que contrariava todo o progresso atingido no último meio século. Como aconteceu isso? Com o grito de revolta das populações menos formadas contra a mudança que atribuíram à globalização, aos migrantes, ao novo mercado de trabalho, à multiculturalidade. Os resultados do Brexit mostraram a população profundamente dividida entre as gerações mais velhas e as gerações mais novas, os primeiros incontestavelmente a favor do Não e os segundos do Sim. Para os mais novos, que se sentem cidadãos da Europa e do Mundo, que ignoram fronteiras físicas, que rejeitam o racismo e o xenofobismo, que são tolerantes e condescendentes, ficou a ideia amarga de que o seu futuro foi hipotecado por aqueles que dele não farão parte.

Da mesma forma sorrateira que o Brexit prevaleceu, Donald Trump venceu as eleições norte-americanas. Usou e abusou do discurso populista, dividiu a América, incitou o ódio, insultou, mentiu, acusou, protestou, resmungou. Muito fez e disse para assustar os eleitores e deixar o Mundo inquietado. Mas para aquelas populações que, como no Reino Unido, perderam ao longo dos anos o emprego estável, que perderam o estilo de vida e o conforto financeiro, para aquelas populações esmagadoramente brancas que viram o deslocamento das grandes indústrias para a China e para o México, a escolha foi sempre simples. E Donald Trump, compreendendo o que funcionou no Brexit e a revolta que também havia no seio da América, prometeu fazer o país novamente grande, fazer regressar as indústrias, fechar fronteiras e bloquear a globalização. Donald Trump prometeu trazer o el-dourado dos anos sessenta e cinquenta. Prometeu à América branca o triunfo sobre as cada vez mais maioritárias minorias, sobre os migrantes, sobre o islamismo e a tolerância. A América interior sonhava regressar ao auge antigo, e Donald Trump abanou-lhes à frente a miragem da velha grandiosidade. Perante tal promessa nunca importou o seu discurso divisivo. Para os seus apoiantes, tudo o que dizia e insinuava não poderia passar de um estilo de retórica, de uma forma demarcada de se insurgir contra o establishment, o tal que abriu as portas à globalização, como no Reino Unido, e que deslocou os bons empregos para o outro lado do Mundo. Donald Trump disse as palavras certas aos eleitores certos nos sítios certos, e por isso venceu, por mais radical e aterrorizadora que a sua mensagem tenho sido durante meses. Perante tanta polémica, nunca arredou pé da sua hedionda retórica porque sabia que resultaria, porque o Brexit lhe tinha mostrado que funcionaria, mesmo se a esmagadora maioria das sondagens indicasse o contrário. Porque o Brexit lhe tinha mostrado que, após uma época de abertura, o Mundo voltara-se novamente para o populismo, para o demagogismo e para o despotismo, e que a oportunidade era dele.



domingo, 21 de agosto de 2016

Appelo virtual

Foi a imagem da semana. Será uma das imagens do ano, uma imagem que encapsula mais de cinco anos de guerra civil entre grupos armados, forças rebeldes e militares, aliados internacionais e facções terroristas, um conflito permanente por um pedaço de terra já irreconhecível e quase inabitável. A imagem de Omran Daqneesh, um menino de cinco anos sentado numa ambulância, coberto de sangue, mazelas e sujidade imediatamente após o resgate dos escombros de outro raide aéreo na destroçada cidade de Aleppo. O olhar distante que parece separar um mundo inteiro a ambulância da dor silenciosa de Omran. Sobrevivente fortuito de um indiferente ataque que vitimou cinco crianças, entre elas o seu irmão mais velho, o olhar de Omran, dividido entre a abertura total do olho direito e o semicerrar forçado por um inchaço do olho esquerdo, conta toda uma história que o mundo tem continuamente ignorado; contem a revolta das milhares de vítimas incógnitas da guerra civil da Síria, homens, mulheres e crianças que nunca receberam um palavra de conforto do mundo que as esqueceu.

A incontornável imagem de Omran Daqneesh percorreu o mundo inteiro. Multiplicou-se pelas redes sociais onde ganhou vida própria, noutra demonstração do poder da viralização que se tornou habitual nos nossos dias. Estranhamente, levantaram-se várias opiniões depreciativas, opiniões que apontaram o dedo ao acto da partilha instantânea sem grande reflexão; às partilhas com frases de ocasião e emojis de tristeza. Sim, muitos partilharam a foto de Omran sem conhecimento ou real preocupação pela guerra da Síria. Sim, muitos limitaram-se a dar seguimento a uma corrente viral, como já antes tinham feito com a imagem do corpo de uma criança na costa da cidade turca de Bodrum que evidenciou a face mais cruel da crise migratória na Europa. Sim, muitos limitam-se a momentos instantâneos de partilha e a breves lamentos, após o que resumem rapidamente o seu quotidiano sem tornarem a pensar na aflição das gentes que por um instante consideraram seriamente.
 
Esquecemo-nos daquele breve lamento que tomou apenas uma mão cheia de segundos, entre o clique na foto e no botão de partilha. Voltamos rapidamente às nossas preocupações e aos nossos problemas. Mas não o fazemos porque não nos preocupamos verdadeiramente com a guerra na Síria e com os outros conflitos e flagelos que se propagam um pouco por todo o mundo como doenças contagiosas. Resumimos rapidamente o nosso quotidiano porque é o que nos resta fazer. Porque a distância para os conflitos é enorme, porque os nossos lamentos se perdem rapidamente na nossa inabilidade para agir e resolver. Porque sozinhos não persuadimos nem influenciamos a tomada de decisão. Sozinhos, podemos tão-somente partilhar o nosso sentimento, mostrar brevemente a nossa dor pela real dor das incontáveis vítimas. Sozinhos, podemos apenas fazer clique na foto e no botão de partilha. Não vamos mudar o destino da guerra. Não vamos salvar vidas. Não vamos proporcionar a paz. Resumimos, portanto, o nosso quotidiano porque só nos resta isso.   

Será errado que, na nossa óbvia e trágica inabilidade para agir e resolver, partilhemos imagens da dor, dos horrores e dos terrores que não compreendemos totalmente? Será errado mostrar que estamos com aqueles que sofrem, que passam horrores e privações indescritíveis, mesmo que apenas por uma mera mão cheia de segundos? Será errado fazer parte de uma corrente viral que leva uma imagem incontornável, uma imagem que encerra uma guerra inteira, a todos os cantos do mundo? Será errado fazer parte de uma corrente alimentada por vozes e lamentos solitários contaminados pela trágica inabilidade para agir e resolver que pode eventualmente chegar àqueles com real poder de influência e decisão, às autoridades e aos grupos não-governamentais que podem intermediar o fim do conflito, de todos os conflitos, e reunir a preciosa ajuda humanitária que reduz o sofrimento dos inocentes e dá um pouco de voz e alegria ao seu prolongado silêncio, que enche novamente de luz os seus olhares distantes que nos parecem separar um mundo inteiro da sua dor?

Sim, sozinhos não alteramos o rumo destrutivo dos acontecimentos, mas às tantas partilhas e aos tantos lamentos criamos pressão sobre aqueles que têm o dever de resolver. Participemos pois na viralização de imagens como a de Omran Daqneesh, porque uma imagem incontornável pode ser o mote para o processo de resolução, para a paz; porque o sofrimento hirto de Omran Daqneesh, eternizado naquele breve momento numa ambulância qualquer, pode finalmente interessar o mundo a envidar esforços para estancar a hemorragia da Síria e a pôr termo aos conflitos e flagelos que dominam aquela região.    



quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Pérola sem concha

Em pouco mais de seis anos, a Madeira e a sua capital foram avassaladas por desastres naturais que transfiguraram o panorama madeirense. No final de Fevereiro de 2010, um inédito nível de pluviosidade – o Funchal tem uma média anual de 750 l/m2 e registou em poucas horas 114 l/m2 – apanhou de surpresa a população madeirense. A aluvião que desceu das serras altas da capital madeirense arrastou casas, destruiu estradas, desfez campos de cultivo e vitimou quase uma centena de pessoas (relatos populares falam em números superiores). A baixa da cidade do Funchal ficou amplamente irreconhecível. Para quem como eu conhecia a cidade como a palma das suas mãos não pôde senão ficar aterrado e abalado pelas imagens devastadoras que preencheram espaços noticiosos e redes sociais. Turbulentas águas castanhas arrastaram terra, pedregulhos, carros, animais e populares e dividiram-se indiferentemente pelas ruas sobranceiras do Funchal, espalhando um rasto de destruição que ainda hoje não foi completamente apagado (obrigou à transformação da baía da cidade, com destaque para a construção da Praça do Povo no local onde os inertes da aluvião foram acumulados).  

A tragédia de Fevereiro de 2010, que também atingiu fortemente outras zonas da ilha, colocou em evidência um problema conhecido informalmente pelos madeirenses: o insuficiente ordenamento do território que ao longo de anos se manteve inalterado. O mau planeamento resultou ao longo do tempo na idílica paisagem madeirense, predominante nas encostas do Funchal, de casas de diversas formas e feitos a galgar vales e montanhas entre frondosas e cheirosas árvores autóctones da consagrada Laurissilva e dos seus princípios miocénicos e pliocénicos. O panorama é verdadeiramente bonito e impressionante; preenche álbuns e postais de cortar a respiração. Mas esconde a terrível realidade que a grande parte da construção madeirense está como calha e que não há quase prevenção. Quando a chuva caiu imperdoavelmente em Fevereiro de 2010, as águas tumultuosas não tiveram por onde desaguar. As ribeiras não estavam limpas. As casas estavam no caminho. A natureza, furiosa pelo seu impedimento, não teve meias-medidas e fez-se baixar por onde conveio, indiferente às gentes, aos seus bens e às suas vidas.

De 2010 até hoje, o Governo Regional da Madeira fez um esforço para limpar ribeiras e alargar e leitos. A maior obra, no vale sinuoso da Ribeira Brava, ainda continua seis anos depois. À boa maneira madeirense e portuguesa, a emenda só chegou depois da tragédia, no velho costume da acção-reacção. Nesse teimoso costume, os governantes da ilha concentraram-se nas ribeiras e no amotinar da terra e da água e ignoraram outros perigos que davam sinais de advir. O violento incêndio que no Verão de 2013 lavrou 50 hectares de floresta, com suspeitas de fogo posto, atingindo parte do Parque Ecológico do Funchal, não bastou para colocar as autoridades de pré-aviso, para promover a criação de um adequado plano de prevenção. Três anos volvidos, e novamente com indícios de fogo posto, o Funchal voltou a arder. Mas como nunca antes.

Das serras circundantes à zona histórica da cidade, chamas lavraram (lavram ainda) e consumiram vegetação e habitações, num inferno imparável alimentado pelo intenso calor e pelos ventos fortes, um inferno de chamas, cinza e fumo negro que mergulharam o Funchal num cenário dantesco. Mais de mil desalojados e pelo menos três mortos contabilizados. Dois hospitais evacuados e um emblemático e premiado hotel totalmente destruído. O suspeito do fogo posto não tem obviamente indulto possível. O seu tresloucado acto é um acto de terrorismo interno, promovido por uma visão pirómana que não foi totalmente tratada ou vigiada (o suspeito já tinha antecedentes criminais por fogo posto). Mas não é o único Nero da nova tragédia do Funchal. É preciso apontar o dedo aos governantes que, enquanto se ocupavam a preencher a ilha com betão e estradas que não serviam a população, ignoraram o lixo nas florestas, que raramente promoveram a imperativa limpeza da vegetação seca ou prepararam a ilha com meios de combate adaptados à sua particular orografia.

Como madeirense, ver as imagens do Funchal cercado por vorazes chamas enquanto a população tentava desesperadamente salvar as suas casas e o esforço de vidas inteiras com baldes de água e mangueiras sem qualquer pressão foi como um murro no estômago. Impotente à distância que me separa da minha terra-natal, custou-me não poder fazer nada. Mas custou-me mais ver que os hercúleos esforços da população não bastavam; que as corporações de bombeiros não chegavam, não obstante a sua valentia durante horas a fio; que o Governo Regional continuava a insistir na ideia de fogo controlado e a recusar ajuda externa quando o Funchal já reluzia na escuridão como um facho castigador e todos viam uma situação de total descontrole.


Ainda há duas semanas passeava pelas belas ruas da cidade. Visitei o Mercado dos Lavradores onde frutas exóticas abundam em bancas e caixotes desorganizados com cores diversas e cheiros contagiantes. Percorri as principais artérias que são dominadas por comércio de rua e por esplanadas pachorrentas onde os madeirenses tomam café com a sua habitual tranquilidade. Hoje o dia será certamente diferente. O fumo e a cinza preencherão o Mercado e o cheiro não será de frutas exóticas ou do peixe fresco mas da pestilência da madeira queimada e do ar carbónico. Nas ruas não se tomará café descansadamente entre conversas sobre desporto, turistas e o estado do tempo. O Funchal e a Madeira acordam de forma diferente, com um gosto amargo na boca de quem não consegue acreditar no que aconteceu. Um gosto amargo que se prolongará nas próximas semanas e que reprimirá o espírito dos madeirenses nos variados arraiais que acontecem ao longo do mês de Agosto (já no próximo dia 15 teria lugar a emblemática festa do Monte e agora, no coração do incêndio, não é certo que vá acontecer). O mesmo gosto amargo que, à distância, me recebeu pelo amanhecer mesclado num medo de que, quando tudo voltar eventualmente à normalidade, se volte a ignorar os avisos do passado e a trocar prevenção por construção, alerta por festa.


sexta-feira, 24 de junho de 2016

Carta aberta à União

Como é que chegaste a isto? Falhaste. Estás a falhar. Estás a ruir pelos teus próprios alicerces. Toda a tua estrutura treme como algo que procura o equilíbrio perdido durante um terremoto súbito. Não há canto onde te abrigues. Estás ali no meio, no olho do terremoto, fustigada por ondas de choque que vêm de todos os lados e que vão para todos os lados. Só te resta subsistir, protegeres-te com as mãos dos objectos que voam, das paredes que caiem, do chão que te foge. Ai, pobre União, aí sozinha no meio do terremoto. Não há quem te valha? Não haverá quem te possa acudir? Não reconheces que és culpada do teu próprio fadário? Não reconheces que o alimentaste com a tua retórica torta, com o atropelar dos teus próprios princípios, com o teu foco cego, desmedido e indomável no freio orçamental que colocaste aos teus alicerces? Ó União, como não vês que este chão que se fende à tua frente e te coloca à beira de um abismo sem fim foi causado por ti mesmo. Fugiu-te um alicerce e desequilibrou-te a trave-mestra. Como é que o deixaste fugir? Como é que não soubeste prever que te desertaria se continuasses a fazer de conta com todos os problemas que afligiam a tua fundação, se continuasses unicamente preocupada com o freio orçamental que colocaste em todo o lado e que redobrou o peso e o esforço sobre cada alicerce? Como é que não viste que te desertaria se continuasses a ignorar a mudança de pensamento que floresceu em todo o lado, o crescente abandonar da entreajuda entre os teus alicerces, o erguer da aversão entre aqueles que ficam na parte de cima contra aqueles que ficam na parte de baixo?


Não viste nada. Continuaste a insistir no que já não surtia efeito. Substituíste a pedagogia pela demagogia, ameaçaste em vez de aliciares, focaste-te no que perdiam em vez do que ganhariam, falaste do dinheiro e da despesa em vez de falares dos princípios, da paz, da força e do futuro. O alicerce desconfiou do teu discurso torcido e abandonou a tua fundação. Agora tremes. Sofres um terremoto que não sabes como acabará, como te deixará no fim. Segura-te aos 27 alicerces que te restam. Redistribui o peso e volta a equilibrar a tua trave-mestra. Reconhece onde falhaste, onde continuas a falhar. Muda o teu discurso, a tua visão e a tua intenção. Volta às ideias que primeiro te ergueram e te transformaram num sonho corpóreo, que embelezaram por onde te construíste e apaziguaram por onde actuaste. Volta a essas ideias. Lembra-te do passado, do que foi antes de ti. Pensa no que pode voltar a ser sem ti. Tremes agora porque já não há nada a fazer. Caiu-te esse alicerce, esse que era um dos teus mais fortes e queridos. Deixa o orgulho de parte. Concentra-te no que importa. Aguenta essas ondas de choque que te afligem. Acredita nos alicerces que te sobram. Acredita que se mudares podes persistir. Tudo depende ti. Do que agora decidires. Nunca foi tão importante. Nunca tão concludente. O terremoto que te desequilibra será parte da história, mas essa história ainda está por escrever. Não temas. Enfrenta o desafio. Faz ruir as fronteiras que querem voltar a erguer-se, essas, malditas, que já tanto custaram. Dá a volta ao conservadorismo que te tornou negro o coração. Volta a inspirar. A apontar o caminho. Volta a levar longe aqueles que, sozinhos, agarrados ao seu único alicerce, nunca terão força para ir a lado nenhum. Volta a ser uma união e a escancarar as portas do futuro. Ainda acreditamos.     


domingo, 24 de abril de 2016

O grande ciclo das coisas

Quando era criança, eu e a minha irmã mais nova gostávamos de brincar a inventar castelos e percursos de água na areia preta do quintal que o nosso pai um dia improvisara com o material que lhe restava das construções que fazia por profissão. À volta de uma velha e frondosa anoneira que nos brindava com uma plácida sombra em dias de muito calor, construíamos trilhos com engenho e destreza, erguendo pontes e abrindo lagos largos que imitavam a nossa imaginação do mundo. Com os nossos próprios dedos, sem cansaço ou aversão, moldávamos todo o quintal à nossa maneira. Quando os trilhos estavam prontos depois de um dia inteiro de trabalheira, de roupa suja e de muita areia presa nas unhas, puxávamos a água da mangueira e víamos com maravilhamento o mundo que criáramos ganhar vida. Não havia maior satisfação do que aquela. Naquele momento eramos todo-poderosos. Eramos donos do mundo. Daquele pequeno mundo de frágil areia. Era só nosso e eramos nós quem ditava as suas regras. Naquele pequeno mundo habitariam todos os pequenos seres que a nossa cabeça inventariava. Talvez ali vivessem elfos e fadas. Talvez vivessem pequenos homens que desciam o trilho de água brava em jangadas de folhas de anoneiras; construíam casas e castelos, aldeias e cidades e prósperas sociedades que caberiam numa algibeira. Ao entardecer a brincadeira terminava. A nossa mãe surgia para cortar a água e, com as mãos nas ancas na sua famigerada posse de autoridade, para nos dar lições sobre custos e desperdícios. Era mais uma lengalenga que pouco nos consumia e lá desfazíamos imediatamente o nosso pequeno mundo de areia. Fazíamos ruir as pontes e cobríamos os lagos. Mas não ficávamos tristes, porquanto no dia seguinte daríamos novamente vida a um novo empreendimento. Era o ciclo das coisas. Aprendemos logo. Aprendemos ali que tudo o que era construído haveria de ruir um dia para dar lugar a coisas novas. Era mesmo assim que era e que seria para sempre enquanto os homens caminhassem na terra. Era o que toda a gente nos dizia. E o nosso pequeno mundo de areia mostrava-nos, nas suas diferentes existências, que era mesmo assim.

As nossas brincadeiras não eram só construções de areia. Às vezes íamos em carreiras de saudável rivalidade para debaixo de uma ponte feia que ficava perto de casa. O corgo, chamávamos-lhe. Ali acocorávamo-nos à beira de um ribeiro que nascia algures na serra de loureiros, tintureiros e acácias. Com considerável paciência, ficávamos entretidos durante um par de horas a apanhar girinos com baldes e com as próprias mãos. Por vezes, e porque era mais interessante e francamente mais fácil, apanhávamos a forma ainda embrionária destes futuros batráquios e colocávamos em casa em baldes fundos com água e lodo da própria ribeira. Todas as manhãs íamos logo ver como tudo estava. Era a primeira coisa que fazíamos, mesmo antes de nos sentarmos para o pequeno-almoço de copos de leite e deliciosas douradas. Os ovos minúsculos e translúcidos dos batráquios abriam-se ao cabo de um ou duas semanas e os girinos ziguezagueavam para fora. A primeira coisa que os recém-nascidos faziam era conhecer todo o mundo que os acolhia e que não era mais do que um balde fundo e opaco. Talvez na sua pequeneza vissem o mundo como algo misterioso e infinito, com as suas fantasias e os seus segredos. Desconheceriam provavelmente que afinal não passavam de uma experiência e da folia de duas crianças igualmente inocentes, sem maldade, quiçá também elas dentro de um balde de rochas e imponentes montanhas que era a bela ilha em que viviam. Para aqueles girinos e para aquelas crianças, o mundo encerrava enigmas grandiosos. Ao fim de alguns dias, os girinos começavam a mostrar sinais do seu rápido desenvolvimento. Primeiro surgiam as patas de trás, de início duas dependências ansiformes de aparência inútil que um dia se transformariam em duas robustas patas posteriores que confeririam a estes pequenos seres o poder de saltar quase cem vezes o seu tamanho. Depois as suas vistosas caudas encolhiam e surgiam as patas anteriores. Por fim, a cauda desaparecia completamente e os girinos completavam a sua metamorfose. Eram jovens sapos e o balde que tinha sido o seu mundo inteiro durante toda a sua vida já não tinha mistérios nenhuns nem era infinito. Era pequeno para os seus ensejos. Por mais que tentássemos mantê-los no seu balde-mundo, cobrindo-o com lonas ou com as redes vermelhas de sacas de batatas, os jovens sapos saltavam sempre para fora. Mais tarde ou mais cedo saltavam quase cem vezes o seu tamanho para descobrir uma nova realidade, para alargar as fronteiras do seu mundo e fazer cumprir as suas aspirações. Na verdade, não iam para muito longe. Ficavam-se pelo ribeiro que corria mesmo ao lado da nossa casa, mas para quem em toda a sua existência só tinha conhecido um balde fundo era uma mudança monstruosa. Os jovens sapos ficavam a coaxar pelas noites fora, enquanto faziam a sua vida e as suas escolhas. Nenhum deles alguma vez regressou. Ficávamos sempre tristes, eu e a minha irmã mais nova. Depois de tanta dedicação nossa, os jovens sapos tinham ido embora sem hesitar. A nossa irmã mais velha, que diferenciava de nós alguns anos de idade, chegava das suas tardes com cafés e amizades a tempo de nos acalmar. Ela, que era mais sapiente, que entrevia um mundo maior e que já tinha passado por todos os nossos dissabores, fazia-nos ver que era mesmo assim. Era o ciclo das coisas.

Quis o destino (na verdade a sua idade), que ela fosse a primeira a dar um salto cem vezes maior que o seu tamanho. Ao cabo de alguns anos foi a minha vez e depois a da minha irmã mais nova. Um por um abandonámos o nosso balde. Abandonámos uma ilha que para nós já não era misteriosa nem infinita. Para nós, que dávamos aquele salto cem vezes maior do que o nosso tamanho, a sensação era maravilhosa. Tal como os jovens sapos do balde fundo, trocávamos um mundo que já conhecíamos bem e que já não satisfazia as nossas aspirações por algo perfeitamente desconhecido. Partíamos para uma nova realidade e para um mundo grande que encerrava muitos mistérios. Lá, no novo mundo, poderíamos reinventar-nos e moldar a nossa vida como fizéramos antes com as construções na areia. Mas para a nossa mãe e para o nosso pai que ficavam para trás no seu mundo corriqueiro, a sensação era desoladora. Era certo que ficavam profundamente orgulhosos e que se despediam de nós com dezenas de sorrisos e incentivos. Mas conforme cada um de nós subiu lentamente as escadas rolantes do aeroporto da nossa ilha para a área de embarque, podemos ver entre cada aceno e desejo de boa fortuna um ar variegado de angústia e incomportável saudade, ar de quem sabia que nada voltaria a ser o mesmo e que aqueles que agora saltavam para fora do balde, embora fossem voltar muitas vezes para visitá-lo, nunca mais voltariam para viver nele, porquanto doravante o seu mundo era consideravelmente maior do que aquele. Cada um de nós sentiu a sua despedida como um murro no estômago, mas nenhum de nós sentiu um murro tão devastador como o que os nossos pais sentiram por três vezes. Nunca será fácil descrever tamanha sensação e nunca se repetirá.


O nosso mundo abriu-se num salto cem vezes, mil vezes, dez mil vezes maior do que o nosso tamanho e começámos a perceber que o mundo, embora não seja de construções de areia, está em constante renovação e que sempre rui para dar lugar a coisas novas. A nossa metamorfose concluiu-se e a nossa grande ambição é que o mundo nunca fique pequeno de mais e que tenha sempre mistérios e oportunidades. Mas a vida é difícil. O nosso país enfrenta tempos complicados e o próprio mundo, não obstante a sua dimensão e pluralidade, parece embrenhado em vícios, disputas e acusações que não têm fim. Tudo o que há-de vir para a frente permanece incógnito, como tem que ser. O nosso desejo é que o que quer que venha nos permita sempre construir coisas. Que nos permita ser donos desse pequeno mundo construído, que ditemos as suas regras e que, num devaneio ou num rasgo de inconcebível lucidez, o habitemos com os seres que a nossa cabeça inventa. O nosso desejo é que o que quer que venha nos tolere baldes carregados de vida. Que, ao contrário dos jovens sapos que em tempos tivéramos, nos consinta voltar sempre à casa ao pé da ribeira, ao quintal resguardado pela sombra da anoneira e ao corgo sob a ponte feia onde fomos crianças inocentes que tinham um mundo que cabia na palma da sua mão. O nosso desejo é que o que quer que venha nos ajude a regressar sempre à casa ao pé da ribeira, por mais que pequeno tempo, e que cada regresso diminua o aperto daqueles que ficaram no balde e que se calhar não deram o seu salto cem vezes maior que o seu tamanho para que nós pudéssemos. É este o grande ciclo das coisas. E se não for, ou se não tem sido, façamo-lo ser.     


quarta-feira, 9 de março de 2016

Geração de muitos nomes

Esta semana o The Guardian revelou números preocupantes sobre a geração nascida entre 1980 e meados da década de 90. Sobre a minha geração. A investigação levada a cabo pelo jornal britânico revelou que a actual geração de jovens adultos está cada vez mais afastada da riqueza gerada no mundo ocidental, ganhando em média menos 20% do que a média da população activa. Há 30 anos, os jovens adultos recebiam acima da média nacional. Em 2016 têm menos rendimento disponível que pensionistas e enfrentam muito maiores obstáculos para se estabelecerem como adultos independentes que as gerações anteriores. É uma geração que para se independentizar completamente, para ter uma casa ou formar uma família, tem que fazer sérios compromissos financeiros. O The Guardian conclui que a geração em causa não está a atingir as etapas fundamentais da vida adulta ao mesmo ritmo que as gerações anteriores porque tais etapas são muito mais caras e porque esta geração está a ser pior renumerada do que os seus progenitores com a mesma idade.  

Pertencendo a esta geração, só posso confirmar o cenário pessimista traçado pelo jornal. Aliás, considero-o francamente pior, porquanto a investigação debruça-se sobre dados de poderosas economias como os EUA, o Reino Unido ou a Alemanha. Portugal não entra nestas contas, mas todos temos noção de que estamos pior do que o resto da Europa e do Ocidente, que caminhamos na cauda do crescimento há largos anos. Se nestes países se constata uma perda de rendimento nas gerações mais novas, que dizer de Portugal? Que dizer dos milhares de jovens adultos portugueses sem emprego, ou com emprego precário, comummente em áreas de actividade distintas daquela em que se formaram? Que dizer de um país em que o desemprego jovem ronda os 35%, contra os já preocupantes 17% da média europeia? Que dizer de um país que, agrilhoado durante anos pelos ferros da austeridade, assistiu nos anos recentes a uma fuga de cérebros, sugerida até pelo Estado português? Estaremos perante uma geração perdida? Estarei inserido numa geração de potencial desbaratado, de criatividade inibida e de constante desvalorização do conhecimento adquirido?

Como gostaria de escrever outra ideia e como me dói reconhecer esta. Sei as dificuldades que os jovens da minha geração enfrentam quando terminam os estudos. Sei as dificuldades que sentiram para levá-los a bom termo. Conheço muito bem os sacrifícios feitos por pais e famílias para, perante bolsas de estudo exíguas e propinas altas, garantir um diploma superior aos filhos. Um diploma que em décadas assegurava uma espécie de el-dourado e que hoje em dia apenas assegura o empolado axiónimo Dr. antes do nome num cartão de multibanco. Um diploma dantes considerado com estima e agora encarado como um singelo atestado de conhecimentos diversos. Um diploma que permite acesso a estágios profissionais, raramente a trabalho certo, embebidos em promessas extensas de continuidade e perspectivas salariais rapidamente extinguidas em trabalho extraordinário, precário ou gratuito. Temos menos rendimento que as gerações anteriores? Sim; às vezes nem o temos. Mas pior é não ter a mesma quantidade de oportunidades. Pior é não ter perspectivas de futuro e sentir das gerações anteriores pressão para iniciar a vida adulta nos mesmos parâmetros delas. Sentir destas gerações que ter casa arrendada não vale, não ter carro próprio é uma vergonha e permanecer solteiro é uma fatalidade.


Já fomos chamados de millennials, de geração Y e de geração à rasca. Somos a geração de muitos nomes. Somos a geração dos elevados custos de vida, do arrendamento, do passe social e do Porta 65. Somos a geração do desemprego altamente qualificado, da precaridade e dos recibos verdes. Somos a geração do vestir a camisola, das horas extra, dos estágios e pré-estágios, da renumeração em forma de experiência profissional e dos trainees com experiência. Somos a geração sem poupanças, da mutabilidade profissional, dos contratos a seis meses. Somos a geração sem carreira profissional. Somos a geração proibida de perspectivar o futuro que se esfoça para se visualizar daí a cinco anos em entrevistas de emprego. Somos a geração não-emancipada, financeiramente dependente e arrestada. Somos a geração acusada de atrasar a sua independência, de se perder em tecnologias e movimentos trendy, nas selfies, no Facebook e nos tweets. Somos a geração mais qualificada, capaz de falar mais do que uma língua e de dominar diferentes áreas. Somos a geração que mais tempo permanece em posições juniores. A geração que não recebe aumentos ou promoções. A geração aconselhada a emigrar. Somos a geração que conta tostões a meio do mês. Das férias cá dentro. Dos tascos e bares escuros. Somos a geração solteira e sem descendência. Somos uma geração de transição. Uma geração perdida. Um mito futuro?


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Um estranho fait divers

O Orçamento de Estado (OE) para 2016 foi aprovado na generalidade com um histórico “sim” das esquerdas. António Costa anunciou que o OE representa o fim da austeridade. A direita do espectro político acusou-o de a transferir. O Primeiro-Ministro explica que a redução da sobretaxa e a reposição de pensões representa um virar efectivo de página na austeridade. PSD e CDS apontam que o que o Governo reduz em sobretaxa e repõe em pensões vai buscar a impostos acrescidos sobre o tabaco, produtos petrolíferos (ISP) e impostos sobre lucros bancários (IS). Ambos estão errados e certos ao mesmo tempo. Entre a retórica do Governo e a da Oposição mescla-se a escolha quasi-ideológica entre impostos directos e indirectos, uma visão de filosofia económica entre a emancipação fiscal e o feudalismo tributário.

Os impostos directos são aqueles que incidem directamente sobre o rendimento, quer das pessoas singulares (IRS) quer das pessoas coletivas (IRC). Os impostos indiretos são aqueles que incidem sobre o consumo ou a despesa, incidindo sobre a generalidade dos bens que consumimos diariamente (e.g. IVA, ISP, IS). O OE de 2016 prevê a redução de IRS (na sobretaxa criada em 2011) e o aumento de ISP e IS. Há efectiva redução de austeridade ou transferência desta? Depende. Depende da forma como olhamos para a tributação. A minha crença é de que qualquer redução em impostos directos se traduz numa efectiva redução de austeridade pelo simples facto de que o contribuinte ganha maior autonomia sobre o seu rendimento. Enquanto os impostos directos são comummente aplicados com retenção na fonte (compreendendo a diferença entre o nosso salário bruto e o salário líquido), os indirectos existem apenas e no momento em que alguém consume determinado bem, pagando no preço o respectivo imposto sobre o valor acrescentado. No limite utópico em que a totalidade de impostos directos são substituídos por impostos indirectos, ceteris paribus, se nada se consumir não haverá lugar a tributação. A opção de sermos ou não tributados, e a extensão desta, está alinhada com o nosso perfil de consumo.

A “bondade” dos impostos é indiscutível. Sem impostos, a sociedade não funciona. Sem receita, nenhum Estado pode facilitar à sua população serviços de valor acrescentado que não existiriam se dependentes da vontade individual. Mas o princípio de que o Estado se apodera de um terço do trabalho de alguém só porque as regras e o facilitismo assim o determinam lembra um agrilhoado sistema medieval, feudalista, em que o simples servo entrega parte da sua produção, dos seus herculanos esforços ao sol, à chuva e ao incontrolável suor, ao senhorio, à nobreza ou à realeza, que têm poder para assim deliberar, sem manobras impugnatórias. O sistema feudal da Idade Média pautava-se por capitações, banalidades e talhas. Tantos anos volvidos, o sistema não mudou, apenas se transfigurou. O trabalhador já não entrega um terço da sua produção ao senhorio, mas entrega um terço do seu rendimento ao Estado. O trabalhador já não paga banalidades para usar moinhos, fornos e pontes, mas paga taxas moderadoras para ir a um hospital, propinas para frequentar o Ensino Superior e portagens para usar pontes e estradas. O imposto adaptou-se à industrialização e à terciarização, mas não se modificou na sua essência. E é por o sistema fiscal actual partir de um princípio errado que agora reflicto sobre ele. É necessário partir progressivamente para um sistema fiscal mais musculado, assente no imposto indirecto e no perfil de consumo, com os inerentes ajustamentos inflacionários e dedutivos.

Com impostos total ou maioritariamente indirectos, não obstante percentualmente mais elevados a fim de conservar a receita fiscal do Estado, as famílias terão mais rendimento disponível. Poderão aplicá-lo em consumo. Ou não. Têm essa autonomia. A aplicação de impostos mais altos sobre bens de luxo e mais baixos sobre bens de primeira necessidade salvaguarda a tributação progressiva, no princípio de que o perfil de consumo varia consideravelmente das franjas mais altas às mais baixas da sociedade. Aqueles com mais rendimento consumirão em tese mais e mais em bens de valor acrescentado. Por outro lado, perante uma inesperada dificuldade financeira, um indivíduo poderá optar por refrear o seu consumo, ou alterar a tipologia de bens consumidos, ao passo que o imposto directo, retirando rendimento independentemente da condição financeira no momento da retenção, reduz consideravelmente esta alternativa.

Voltando ao OE de 2016, António Costa está correcto quando anuncia a redução da austeridade. Efectivamente, com menor retenção na fonte, o rendimento das famílias aumenta. Se depois este aumento se perde ou não no consumo, é uma escolha das famílias. O argumento rapidamente surgirá de que poucos ou ninguém pode evitar o imposto sobre produtos petrolíferos e o imposto de selo que agora aumentam. Mas tem em teoria a capacidade de evitar se eleger outro meio de transporte ou evitar o recurso a créditos bancários. Pode não ser prático, mas a passagem dessa retenção na fonte para uma retenção no momento do consumo significa um progresso no sentido da emancipação fiscal. Já não falamos em austeridade, mas em restrições. Já não perdemos uma parte do rendimento só porque sim. Perdemos porque aceitamos as condições para um determinado tipo de consumo.


Algum dia deixaremos os impostos directos para trás? Dificilmente. São mais fáceis de aplicar, de corrigir e de fiscalizar. Nenhum trabalhador se pode isentar. É a condição mínima de trabalho. Mas continuaremos dispostos a uma tributação intrinsecamente feudatária? Tenho dúvidas… Se calhar nada nesta reflexão faz sentido e facilmente se reunirá um conjunto de fortes evidências a favor dos impostos directos. À cabeça penso na simplicidade em determinar a carga contributiva de cada um e o risco de o incremento no rendimento potenciar a economia paralela. Fica a minha mea culpa. Mas se este desabafo faz ponderar minimamente, então não se trata meramente de um estranho fait divers que hoje adula esta página, desprovido de qualquer mérito. E isso já é um notável avanço.      


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Europe of PIIGS

Sempre me honrei por ser europeísta. Sempre reconheci a importância da União Europeia para Portugal e para a economia portuguesa. Sempre defendi uma Europa unida. Sempre acreditei que o caminho para a frente seria necessariamente com progressiva integração, porventura até à instalação de uma integração económica total no continente europeu. Todavia, ao longo dos últimos meses, sinto-me com uma sensação amarga em relação à Europa.

Finda a 2ª Guerra Mundial urgia sarar feridas na Europa. Urgia reduzir a crispação, estabelecer pontes e introduzir uma época de estabilidade e crescimento. É certo que ainda houve um muro a dividir Berlim e famílias até 1989, é certo que ainda houve conflitos nas regiões balcânicas provocando milhares de vítimas e desalojados, mas é inegável que a génese da União Europeia a partir da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e da Comunidade Económica Europeia trouxe uma época próspera de aproximação entre os povos europeus, com abertura de fronteiras e livre circulação de pessoas nos países signatários do Espaço Schengen. Época que, com a criação da moeda única colocada em circulação em 2002, trouxe importantes apoios e possibilidades de crescimento aos países pior posicionados dentro da União.

Até 2007, a robustez da União Europeia era inegável e tudo indicava que fosse aumentar. O Tratado de Lisboa assinado no final desse ano trouxe uma maior integração política entre os países da comunidade, transformando o Banco Central Europeu numa instituição oficial, criando um Tribunal de Justiça pautado por uma Carta dos Direitos Fundamentais juridicamente vinculativa e estabelecendo uma Política de Defesa e de Segurança comum marcada pela solidariedade mútua. Em 2008 tudo mudou. A crise internacional iniciada com a crise do subprime norte-americano criou cissuras no continente europeu e introduziu uma divisão informal entre os países do norte e os países periféricos e do sul mediterrânico, doravante designados por PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Historicamente, estes cinco países ficaram continuamente atrás dos restantes nos índices de crescimento económico, apresentando regularmente défices e aumento de dívida pública. Não obstante, a pertença à União Europeia e à moeda única significou quase sempre um auxílio à asfixia financeira que os mercados internacionais colocavam, na linha do princípio de solidariedade que vinculava toda a União.  

A partir de 2008 a atitude mudou. Sem uma protecção europeia robusta, Irlanda, Grécia e Portugal foram sucessivamente alvo de especulação negativa por parte de agências de rating que foram cortando a qualidade da dívida destes países até ao nível de lixo, impossibilitando-os de se financiar nos mercados. Ora, e porque nenhuma nação vive sem dívida, resultaram inevitavelmente pedidos de ajuda financeira internacional ao BCE e ao FMI. Resultou a temível troika. Em 2012, e quando Espanha e Itália começavam a ser alvo da mesma especulação negativa, o BCE de Mário Draghi decidiu-se por uma magia financeira que quase imediatamente acalmou a subida de juros de dívida por todo o lado. Através do programa Outright Monetary Transactions, Draghi passou a comprar títulos soberanos dos países membros da zona euro, implicando uma transferência de riscos. Mais do que a panóplia de medidas de austeridade implementadas em Portugal pelo anterior Executivo, foi o programa de Draghi que fez descer as taxas de juro e que permitiu que Portugal voltasse a negociar nos mercados de forma razoável. Aqui, o mecanismo de solidariedade da União funcionou, mas fica até hoje por se perceber porque é que o mesmo não foi accionado mais cedo quando Irlanda, Grécia e Portugal sofriam especulação agressiva. Muito poderia ter sido diferente. A austeridade não teria sido potencialmente tão draconiana.

Agora que Portugal tem um novo governo que promete reduzir austeridade sobre as famílias, reduzindo carga fiscal e repondo pensões e salários, a União volta a virar costas. O Orçamento para 2016 segue uma linha de retórica diferente daquela que os decisores europeus e os analistas internacionais consideram certa. Mais do que uma incompatibilização técnica, trata-se de uma incompatibilização política. O Governo português prevê que a economia cresça e que Portugal cumpra os seus compromissos através de uma forte aposta no rendimento e no consumo. Decisores europeus e analistas internacionais acreditam que este caminho só pode ser conseguido através de austeridade, de agressão fiscal e de contenção na despesa pública. Ideologicamente, as duas visões para a economia portuguesa não podiam ser mais contrárias. Perante a desconfiança para com o cenário traçado por Mário Centeno, as agências de rating voltaram a ameaçar com a sombra da especulação. Novamente, a União esqueceu o princípio de solidariedade e colocou-se do lado errado, apostando contra Portugal. Pelo meio ignorou a soberania da nação portuguesa e a sua autonomia para decidir o rumo dos seus negócios, não obstante as garantias do novo Executivo de que todos os compromissos internacionais seriam cumpridos. A mesma União que fechou os olhos à aprovação na Dinamarca do confisco de bens (acima de 1340 euros) aos refugiados que chegam das regiões de conflito no Médio Oriente. A mesma União que fechou os olhos ao fecho unilateral de fronteiras na Hungria e noutros países limítrofes da Europa, colocando em causa o Espaço Schengen. A mesma União que enfrenta a possibilidade de saída do Reino Unido – um dos seus principais membros fundadores – em discordância com os diversos mecanismos de solidariedade entre os Estados-membro. A mesma União que perante a hipótese de viragem à esquerda em Espanha quer fazer de Portugal exemplo.


Por estas e muitas mais razões que escapam a esta breve análise, a desilusão com a União Europeia é ineludível. O tratamento arrogante dos países do norte para com os do sul enjoa. O tratamento disforme e arrogante para com Portugal merece repúdio. Sempre me honrei por ser europeísta. Sempre reconheci a importância da União Europeia para Portugal e para a economia portuguesa. Sempre defendi uma Europa unida. Sempre acreditei que o caminho para a frente seria necessariamente com progressiva integração, porventura até à instalação de uma integração económica total no continente europeu. Todavia, sinto-me frio e distante em relação à Europa. Sinto um desconfortável desencanto. E um considerável medo de que, por um fugaz instante de fraqueza, a ideia do “orgulhosamente sós” me passe pela cabeça.