Em pouco mais
de seis anos, a Madeira e a sua capital foram avassaladas por desastres
naturais que transfiguraram o panorama madeirense. No final de Fevereiro de
2010, um inédito nível de pluviosidade – o Funchal tem uma média anual de 750 l/m2
e registou em poucas horas 114 l/m2 – apanhou de surpresa a
população madeirense. A aluvião que desceu das serras altas da capital
madeirense arrastou casas, destruiu estradas, desfez campos de cultivo e
vitimou quase uma centena de pessoas (relatos populares falam em números
superiores). A baixa da cidade do Funchal ficou amplamente irreconhecível. Para
quem como eu conhecia a cidade como a palma das suas mãos não pôde senão ficar
aterrado e abalado pelas imagens devastadoras que preencheram espaços
noticiosos e redes sociais. Turbulentas águas castanhas arrastaram terra, pedregulhos,
carros, animais e populares e dividiram-se indiferentemente pelas ruas
sobranceiras do Funchal, espalhando um rasto de destruição que ainda hoje não
foi completamente apagado (obrigou à transformação da baía da cidade, com destaque
para a construção da Praça do Povo no local onde os inertes da aluvião foram acumulados).
A tragédia de
Fevereiro de 2010, que também atingiu fortemente outras zonas da ilha, colocou
em evidência um problema conhecido informalmente pelos madeirenses: o insuficiente
ordenamento do território que ao longo de anos se manteve inalterado. O mau
planeamento resultou ao longo do tempo na idílica paisagem madeirense,
predominante nas encostas do Funchal, de casas de diversas formas e feitos a
galgar vales e montanhas entre frondosas e cheirosas árvores autóctones da consagrada
Laurissilva e dos seus princípios miocénicos e pliocénicos. O panorama é
verdadeiramente bonito e impressionante; preenche álbuns e postais de cortar a
respiração. Mas esconde a terrível realidade que a grande parte da construção
madeirense está como calha e que não há quase prevenção. Quando a chuva caiu
imperdoavelmente em Fevereiro de 2010, as águas tumultuosas não tiveram por
onde desaguar. As ribeiras não estavam limpas. As casas estavam no caminho. A natureza,
furiosa pelo seu impedimento, não teve meias-medidas e fez-se baixar por onde conveio,
indiferente às gentes, aos seus bens e às suas vidas.
De 2010 até
hoje, o Governo Regional da Madeira fez um esforço para limpar ribeiras e
alargar e leitos. A maior obra, no vale sinuoso da Ribeira Brava, ainda
continua seis anos depois. À boa maneira madeirense e portuguesa, a emenda só
chegou depois da tragédia, no velho costume da acção-reacção. Nesse teimoso costume,
os governantes da ilha concentraram-se nas ribeiras e no amotinar da terra e da
água e ignoraram outros perigos que davam sinais de advir. O violento incêndio que
no Verão de 2013 lavrou 50 hectares de floresta, com suspeitas de fogo posto,
atingindo parte do Parque Ecológico do Funchal, não bastou para colocar as
autoridades de pré-aviso, para promover a criação de um adequado plano de
prevenção. Três anos volvidos, e novamente com indícios de fogo posto, o
Funchal voltou a arder. Mas como nunca antes.
Das serras
circundantes à zona histórica da cidade, chamas lavraram (lavram ainda) e
consumiram vegetação e habitações, num inferno imparável alimentado pelo
intenso calor e pelos ventos fortes, um inferno de chamas, cinza e fumo negro
que mergulharam o Funchal num cenário dantesco. Mais de mil desalojados e pelo
menos três mortos contabilizados. Dois hospitais evacuados e um emblemático e
premiado hotel totalmente destruído. O suspeito do fogo posto não tem
obviamente indulto possível. O seu tresloucado acto é um acto de terrorismo
interno, promovido por uma visão pirómana que não foi totalmente tratada ou
vigiada (o suspeito já tinha antecedentes criminais por fogo posto). Mas não é
o único Nero da nova tragédia do Funchal. É preciso apontar o dedo aos
governantes que, enquanto se ocupavam a preencher a ilha com betão e estradas
que não serviam a população, ignoraram o lixo nas florestas, que raramente
promoveram a imperativa limpeza da vegetação seca ou prepararam a ilha com
meios de combate adaptados à sua particular orografia.
Como
madeirense, ver as imagens do Funchal cercado por vorazes chamas enquanto a
população tentava desesperadamente salvar as suas casas e o esforço de vidas inteiras
com baldes de água e mangueiras sem qualquer pressão foi como um murro no estômago.
Impotente à distância que me separa da minha terra-natal, custou-me não poder fazer
nada. Mas custou-me mais ver que os hercúleos esforços da população não
bastavam; que as corporações de bombeiros não chegavam, não obstante a sua valentia
durante horas a fio; que o Governo Regional continuava a insistir na ideia de
fogo controlado e a recusar ajuda externa quando o Funchal já reluzia na
escuridão como um facho castigador e todos viam uma situação de total
descontrole.
Ainda há duas
semanas passeava pelas belas ruas da cidade. Visitei o Mercado dos Lavradores
onde frutas exóticas abundam em bancas e caixotes desorganizados com cores
diversas e cheiros contagiantes. Percorri as principais artérias que são dominadas
por comércio de rua e por esplanadas pachorrentas onde os madeirenses tomam café
com a sua habitual tranquilidade. Hoje o dia será certamente diferente. O fumo
e a cinza preencherão o Mercado e o cheiro não será de frutas exóticas ou do
peixe fresco mas da pestilência da madeira queimada e do ar carbónico. Nas ruas
não se tomará café descansadamente entre conversas sobre desporto, turistas e o
estado do tempo. O Funchal e a Madeira acordam de forma diferente, com um gosto
amargo na boca de quem não consegue acreditar no que aconteceu. Um gosto amargo
que se prolongará nas próximas semanas e que reprimirá o espírito dos
madeirenses nos variados arraiais que acontecem ao longo do mês de Agosto (já
no próximo dia 15 teria lugar a emblemática festa do Monte e agora, no coração do
incêndio, não é certo que vá acontecer). O mesmo gosto amargo que, à distância,
me recebeu pelo amanhecer mesclado num medo de que, quando tudo voltar eventualmente
à normalidade, se volte a ignorar os avisos do passado e a trocar prevenção por
construção, alerta por festa.
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