quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Pérola sem concha

Em pouco mais de seis anos, a Madeira e a sua capital foram avassaladas por desastres naturais que transfiguraram o panorama madeirense. No final de Fevereiro de 2010, um inédito nível de pluviosidade – o Funchal tem uma média anual de 750 l/m2 e registou em poucas horas 114 l/m2 – apanhou de surpresa a população madeirense. A aluvião que desceu das serras altas da capital madeirense arrastou casas, destruiu estradas, desfez campos de cultivo e vitimou quase uma centena de pessoas (relatos populares falam em números superiores). A baixa da cidade do Funchal ficou amplamente irreconhecível. Para quem como eu conhecia a cidade como a palma das suas mãos não pôde senão ficar aterrado e abalado pelas imagens devastadoras que preencheram espaços noticiosos e redes sociais. Turbulentas águas castanhas arrastaram terra, pedregulhos, carros, animais e populares e dividiram-se indiferentemente pelas ruas sobranceiras do Funchal, espalhando um rasto de destruição que ainda hoje não foi completamente apagado (obrigou à transformação da baía da cidade, com destaque para a construção da Praça do Povo no local onde os inertes da aluvião foram acumulados).  

A tragédia de Fevereiro de 2010, que também atingiu fortemente outras zonas da ilha, colocou em evidência um problema conhecido informalmente pelos madeirenses: o insuficiente ordenamento do território que ao longo de anos se manteve inalterado. O mau planeamento resultou ao longo do tempo na idílica paisagem madeirense, predominante nas encostas do Funchal, de casas de diversas formas e feitos a galgar vales e montanhas entre frondosas e cheirosas árvores autóctones da consagrada Laurissilva e dos seus princípios miocénicos e pliocénicos. O panorama é verdadeiramente bonito e impressionante; preenche álbuns e postais de cortar a respiração. Mas esconde a terrível realidade que a grande parte da construção madeirense está como calha e que não há quase prevenção. Quando a chuva caiu imperdoavelmente em Fevereiro de 2010, as águas tumultuosas não tiveram por onde desaguar. As ribeiras não estavam limpas. As casas estavam no caminho. A natureza, furiosa pelo seu impedimento, não teve meias-medidas e fez-se baixar por onde conveio, indiferente às gentes, aos seus bens e às suas vidas.

De 2010 até hoje, o Governo Regional da Madeira fez um esforço para limpar ribeiras e alargar e leitos. A maior obra, no vale sinuoso da Ribeira Brava, ainda continua seis anos depois. À boa maneira madeirense e portuguesa, a emenda só chegou depois da tragédia, no velho costume da acção-reacção. Nesse teimoso costume, os governantes da ilha concentraram-se nas ribeiras e no amotinar da terra e da água e ignoraram outros perigos que davam sinais de advir. O violento incêndio que no Verão de 2013 lavrou 50 hectares de floresta, com suspeitas de fogo posto, atingindo parte do Parque Ecológico do Funchal, não bastou para colocar as autoridades de pré-aviso, para promover a criação de um adequado plano de prevenção. Três anos volvidos, e novamente com indícios de fogo posto, o Funchal voltou a arder. Mas como nunca antes.

Das serras circundantes à zona histórica da cidade, chamas lavraram (lavram ainda) e consumiram vegetação e habitações, num inferno imparável alimentado pelo intenso calor e pelos ventos fortes, um inferno de chamas, cinza e fumo negro que mergulharam o Funchal num cenário dantesco. Mais de mil desalojados e pelo menos três mortos contabilizados. Dois hospitais evacuados e um emblemático e premiado hotel totalmente destruído. O suspeito do fogo posto não tem obviamente indulto possível. O seu tresloucado acto é um acto de terrorismo interno, promovido por uma visão pirómana que não foi totalmente tratada ou vigiada (o suspeito já tinha antecedentes criminais por fogo posto). Mas não é o único Nero da nova tragédia do Funchal. É preciso apontar o dedo aos governantes que, enquanto se ocupavam a preencher a ilha com betão e estradas que não serviam a população, ignoraram o lixo nas florestas, que raramente promoveram a imperativa limpeza da vegetação seca ou prepararam a ilha com meios de combate adaptados à sua particular orografia.

Como madeirense, ver as imagens do Funchal cercado por vorazes chamas enquanto a população tentava desesperadamente salvar as suas casas e o esforço de vidas inteiras com baldes de água e mangueiras sem qualquer pressão foi como um murro no estômago. Impotente à distância que me separa da minha terra-natal, custou-me não poder fazer nada. Mas custou-me mais ver que os hercúleos esforços da população não bastavam; que as corporações de bombeiros não chegavam, não obstante a sua valentia durante horas a fio; que o Governo Regional continuava a insistir na ideia de fogo controlado e a recusar ajuda externa quando o Funchal já reluzia na escuridão como um facho castigador e todos viam uma situação de total descontrole.


Ainda há duas semanas passeava pelas belas ruas da cidade. Visitei o Mercado dos Lavradores onde frutas exóticas abundam em bancas e caixotes desorganizados com cores diversas e cheiros contagiantes. Percorri as principais artérias que são dominadas por comércio de rua e por esplanadas pachorrentas onde os madeirenses tomam café com a sua habitual tranquilidade. Hoje o dia será certamente diferente. O fumo e a cinza preencherão o Mercado e o cheiro não será de frutas exóticas ou do peixe fresco mas da pestilência da madeira queimada e do ar carbónico. Nas ruas não se tomará café descansadamente entre conversas sobre desporto, turistas e o estado do tempo. O Funchal e a Madeira acordam de forma diferente, com um gosto amargo na boca de quem não consegue acreditar no que aconteceu. Um gosto amargo que se prolongará nas próximas semanas e que reprimirá o espírito dos madeirenses nos variados arraiais que acontecem ao longo do mês de Agosto (já no próximo dia 15 teria lugar a emblemática festa do Monte e agora, no coração do incêndio, não é certo que vá acontecer). O mesmo gosto amargo que, à distância, me recebeu pelo amanhecer mesclado num medo de que, quando tudo voltar eventualmente à normalidade, se volte a ignorar os avisos do passado e a trocar prevenção por construção, alerta por festa.


Sem comentários:

Enviar um comentário