O Brexit
deveria ter servido de aviso. Contrariando todas as sondagens, o Não à Europa
venceu. De forma sorrateira, o discurso populista, ferido de demagogia, espraiou-se
pela população britânica como um cancro metastizado; não se fez sentir, não causou
dor nem sofrimento. E como um cancro que faz chegar o seu toque negro aos
recantos mais frágeis do corpo humano, o discurso populista promovido pelo
pensamento extremista tomou conta das regiões menos favorecidas da ilha
britânica, das franjas mais pobres e mais penalizadas pelo movimento globalizante
que marcou a última metade do século XX e que caracteriza o arranque do século
XXI. Nestes meios pequenos, isolados, regiões do interior onde outrora
predominou indústria e agricultura, o sentimento antiglobalização adolesceu
conforme o emprego se tornou mais tecnológico e se moveu para as regiões
litorais e para as grandes metrópoles. Esta nova forma de emprego, associado ao
internet of things, criou novas
oportunidades e mudou radicalmente o mundo. Mas enquanto enaltecemos a mudança
e nos entretivemos com todas as possibilidades que a internet nos proporcionou,
enquanto nos abstraímos nos smartphones
e na panóplia de redes sociais, as populações daquelas regiões, populações com
menor grau de formação, rejeitaram amplamente a mudança. Enquanto louvámos as
novas oportunidades tecnológicas, lamentaram a deslocação das indústrias e da
agricultura para outras regiões do planeta, terras de mão-de-obra barata;
lamentaram o desemprego que se originou e a perda do estilo de vida e do
conforto financeiro que tinham.
Ao
mesmo tempo que estas mudanças aconteceram, o Reino Unido e os países da Europa
abriram as suas fronteiras ao Mundo, à livre circulação de bens e de pessoas. E
com isso assistiu-se a movimentos migratórios com foco nas grandes cidades europeias,
com Londres à cabeça, acrescentando pressão sobre o frágil emprego nas franjas
mais pobres e menos formadas. Quando, no Reino Unido, se chamou a população às
urnas para dizer Sim ou Não à continuação do sonho europeu, o Não ganhou e
deixou o Mundo de queixo caído, perplexo perante um resultado que contrariava
todo o progresso atingido no último meio século. Como aconteceu isso? Com o
grito de revolta das populações menos formadas contra a mudança que atribuíram à
globalização, aos migrantes, ao novo mercado de trabalho, à multiculturalidade.
Os resultados do Brexit mostraram a população profundamente dividida entre as
gerações mais velhas e as gerações mais novas, os primeiros incontestavelmente
a favor do Não e os segundos do Sim. Para os mais novos, que se sentem cidadãos
da Europa e do Mundo, que ignoram fronteiras físicas, que rejeitam o racismo e
o xenofobismo, que são tolerantes e condescendentes, ficou a ideia amarga de
que o seu futuro foi hipotecado por aqueles que dele não farão parte.
Da mesma forma
sorrateira que o Brexit prevaleceu, Donald Trump venceu as eleições
norte-americanas. Usou e abusou do discurso populista, dividiu a América, incitou
o ódio, insultou, mentiu, acusou, protestou, resmungou. Muito fez e disse para
assustar os eleitores e deixar o Mundo inquietado. Mas para aquelas populações
que, como no Reino Unido, perderam ao longo dos anos o emprego estável, que
perderam o estilo de vida e o conforto financeiro, para aquelas populações esmagadoramente
brancas que viram o deslocamento das grandes indústrias para a China e para o
México, a escolha foi sempre simples. E Donald Trump, compreendendo o que
funcionou no Brexit e a revolta que também havia no seio da América, prometeu
fazer o país novamente grande, fazer regressar as indústrias, fechar fronteiras
e bloquear a globalização. Donald Trump prometeu trazer o el-dourado dos anos
sessenta e cinquenta. Prometeu à América branca o triunfo sobre as cada vez
mais maioritárias minorias, sobre os migrantes, sobre o islamismo e a
tolerância. A América interior sonhava regressar ao auge antigo, e Donald Trump
abanou-lhes à frente a miragem da velha grandiosidade. Perante tal promessa nunca
importou o seu discurso divisivo. Para os seus apoiantes, tudo o que dizia e
insinuava não poderia passar de um estilo de retórica, de uma forma demarcada
de se insurgir contra o establishment,
o tal que abriu as portas à globalização, como no Reino Unido, e que deslocou
os bons empregos para o outro lado do Mundo. Donald Trump disse as palavras
certas aos eleitores certos nos sítios certos, e por isso venceu, por mais
radical e aterrorizadora que a sua mensagem tenho sido durante meses. Perante
tanta polémica, nunca arredou pé da sua hedionda retórica porque sabia que resultaria,
porque o Brexit lhe tinha mostrado que funcionaria, mesmo se a esmagadora
maioria das sondagens indicasse o contrário. Porque o Brexit lhe tinha mostrado
que, após uma época de abertura, o Mundo voltara-se novamente para o populismo,
para o demagogismo e para o despotismo, e que a oportunidade era dele.
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