sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Um estranho fait divers

O Orçamento de Estado (OE) para 2016 foi aprovado na generalidade com um histórico “sim” das esquerdas. António Costa anunciou que o OE representa o fim da austeridade. A direita do espectro político acusou-o de a transferir. O Primeiro-Ministro explica que a redução da sobretaxa e a reposição de pensões representa um virar efectivo de página na austeridade. PSD e CDS apontam que o que o Governo reduz em sobretaxa e repõe em pensões vai buscar a impostos acrescidos sobre o tabaco, produtos petrolíferos (ISP) e impostos sobre lucros bancários (IS). Ambos estão errados e certos ao mesmo tempo. Entre a retórica do Governo e a da Oposição mescla-se a escolha quasi-ideológica entre impostos directos e indirectos, uma visão de filosofia económica entre a emancipação fiscal e o feudalismo tributário.

Os impostos directos são aqueles que incidem directamente sobre o rendimento, quer das pessoas singulares (IRS) quer das pessoas coletivas (IRC). Os impostos indiretos são aqueles que incidem sobre o consumo ou a despesa, incidindo sobre a generalidade dos bens que consumimos diariamente (e.g. IVA, ISP, IS). O OE de 2016 prevê a redução de IRS (na sobretaxa criada em 2011) e o aumento de ISP e IS. Há efectiva redução de austeridade ou transferência desta? Depende. Depende da forma como olhamos para a tributação. A minha crença é de que qualquer redução em impostos directos se traduz numa efectiva redução de austeridade pelo simples facto de que o contribuinte ganha maior autonomia sobre o seu rendimento. Enquanto os impostos directos são comummente aplicados com retenção na fonte (compreendendo a diferença entre o nosso salário bruto e o salário líquido), os indirectos existem apenas e no momento em que alguém consume determinado bem, pagando no preço o respectivo imposto sobre o valor acrescentado. No limite utópico em que a totalidade de impostos directos são substituídos por impostos indirectos, ceteris paribus, se nada se consumir não haverá lugar a tributação. A opção de sermos ou não tributados, e a extensão desta, está alinhada com o nosso perfil de consumo.

A “bondade” dos impostos é indiscutível. Sem impostos, a sociedade não funciona. Sem receita, nenhum Estado pode facilitar à sua população serviços de valor acrescentado que não existiriam se dependentes da vontade individual. Mas o princípio de que o Estado se apodera de um terço do trabalho de alguém só porque as regras e o facilitismo assim o determinam lembra um agrilhoado sistema medieval, feudalista, em que o simples servo entrega parte da sua produção, dos seus herculanos esforços ao sol, à chuva e ao incontrolável suor, ao senhorio, à nobreza ou à realeza, que têm poder para assim deliberar, sem manobras impugnatórias. O sistema feudal da Idade Média pautava-se por capitações, banalidades e talhas. Tantos anos volvidos, o sistema não mudou, apenas se transfigurou. O trabalhador já não entrega um terço da sua produção ao senhorio, mas entrega um terço do seu rendimento ao Estado. O trabalhador já não paga banalidades para usar moinhos, fornos e pontes, mas paga taxas moderadoras para ir a um hospital, propinas para frequentar o Ensino Superior e portagens para usar pontes e estradas. O imposto adaptou-se à industrialização e à terciarização, mas não se modificou na sua essência. E é por o sistema fiscal actual partir de um princípio errado que agora reflicto sobre ele. É necessário partir progressivamente para um sistema fiscal mais musculado, assente no imposto indirecto e no perfil de consumo, com os inerentes ajustamentos inflacionários e dedutivos.

Com impostos total ou maioritariamente indirectos, não obstante percentualmente mais elevados a fim de conservar a receita fiscal do Estado, as famílias terão mais rendimento disponível. Poderão aplicá-lo em consumo. Ou não. Têm essa autonomia. A aplicação de impostos mais altos sobre bens de luxo e mais baixos sobre bens de primeira necessidade salvaguarda a tributação progressiva, no princípio de que o perfil de consumo varia consideravelmente das franjas mais altas às mais baixas da sociedade. Aqueles com mais rendimento consumirão em tese mais e mais em bens de valor acrescentado. Por outro lado, perante uma inesperada dificuldade financeira, um indivíduo poderá optar por refrear o seu consumo, ou alterar a tipologia de bens consumidos, ao passo que o imposto directo, retirando rendimento independentemente da condição financeira no momento da retenção, reduz consideravelmente esta alternativa.

Voltando ao OE de 2016, António Costa está correcto quando anuncia a redução da austeridade. Efectivamente, com menor retenção na fonte, o rendimento das famílias aumenta. Se depois este aumento se perde ou não no consumo, é uma escolha das famílias. O argumento rapidamente surgirá de que poucos ou ninguém pode evitar o imposto sobre produtos petrolíferos e o imposto de selo que agora aumentam. Mas tem em teoria a capacidade de evitar se eleger outro meio de transporte ou evitar o recurso a créditos bancários. Pode não ser prático, mas a passagem dessa retenção na fonte para uma retenção no momento do consumo significa um progresso no sentido da emancipação fiscal. Já não falamos em austeridade, mas em restrições. Já não perdemos uma parte do rendimento só porque sim. Perdemos porque aceitamos as condições para um determinado tipo de consumo.


Algum dia deixaremos os impostos directos para trás? Dificilmente. São mais fáceis de aplicar, de corrigir e de fiscalizar. Nenhum trabalhador se pode isentar. É a condição mínima de trabalho. Mas continuaremos dispostos a uma tributação intrinsecamente feudatária? Tenho dúvidas… Se calhar nada nesta reflexão faz sentido e facilmente se reunirá um conjunto de fortes evidências a favor dos impostos directos. À cabeça penso na simplicidade em determinar a carga contributiva de cada um e o risco de o incremento no rendimento potenciar a economia paralela. Fica a minha mea culpa. Mas se este desabafo faz ponderar minimamente, então não se trata meramente de um estranho fait divers que hoje adula esta página, desprovido de qualquer mérito. E isso já é um notável avanço.      


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