domingo, 29 de março de 2015

A hora mudou

A Primavera começou há uma semana e agora chegou a altura do ano em que os nossos relógios se comportam como uma peça de software obsoleto que precisa de uma actualização. A hora mudou e ficamos a pensar se agora amanhece mais cedo ou mais tarde. A tradição da mudança de hora remonta primeiro à necessidade do norte-americano Benjamin Franklin de poupar em velas e mais tarde à I Guerra Mundial e à necessidade de realizar uma poupança energética. A poupança hoje em dia não é palpável (há até estudos que defendem que o consumo é maior), mas não acredito que haja alguém que não goste de uma noite que chega mais tarde e de um pôr-do-sol que ainda se aproveita numa esplanada à beira-mar ou num passeio no parque depois de um dia de trabalho. Não é preciso muito esforço para vender esta ideia. Também no sentido de poupar esforços (ou muitas cedências), Marco António Costa e Maria Luís Albuquerque reuniram-se esta semana com 40 personalidades do mundo dos negócios para vender a ideia de que o PSD é capaz de ganhar as próximas legislativas sozinho, sem necessidade da coligação com os parceiros para o momento do CDS. A confiança do partido do Governo vem de uma mega-sondagem realizada por uma consultora francesa. Os argumentos não são claros, mas poucos devem acreditar que sejam válidos. Talvez só para iludir os Tubarões do Shark Tank.   

A verdade, todavia, é que se soube esta semana que pode haver quantidades comercialmente interessantes de metais valiosos nos esgotos. Cientistas dos Serviços Geológicos dos Estados Unidos concluíram com base num estudo de 8 anos que as fezes e os desperdícios que vão esgoto abaixo podem conter metais valiosos ou elementos raros como ouro, prata e cobre. Das fezes pode fazer-se ouro, literalmente! E se calhar é precisamente isto que Marco António Costa e Maria Luís Albuquerque querem vender. Vender o que parece uma alquimia barata. Barata como se diz que a mudança de hora fica. Vender a ideia de que em toda a porcaria realizada pode haver ouro. Agora sabemos como é que os cofres portugueses estão tão cheios. Mario Draghi, líder do BCE, deu Portugal como um exemplo do sucesso das políticas seguidas nos últimos anos na zona euro e como mais um sinal da retoma na economia europeia. Portugal respira alquimia e o Governo é feito de autênticos alquimistas. Alguns até são VIP. E um agora também é doutor. Passos Coelho visitou o Japão e em Quioto recebeu um doutoramento honoris causa pela Universidade de Estudos Estrangeiros (deve ser uma melhor sentimento que a recusa para o almoço da Associação Académica de Coimbra). Depois da visita de Cavaco Silva à França, de Paulo Portas a Marrocos, o périplo da alquimia portuguesa continua a desbravar fronteiras e a procurar novos esgotos. Muito escreveriam Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro sobre isto no Orpheu, se fosse no seu tempo, há 100 anos atrás quando a revista literária chegou ao público pela primeira vez a 24 de Março. Também se fazia ouro de fezes naqueles tempos, mas nunca como agora.

Por esta altura, Miguel Albuquerque é o novo presidente do Governo Regional da Madeira. Resta saber se vencerá com maioria absoluta ou se terá que se coligar a alguma das outras 10 forças políticas presentes a sufrágio. Seria um mal menor. A tomada de posse do novo Governo será a 25 de Abril, mas não se espere que este seja um dia zero para o panorama madeirense. Não se espere mudanças drásticas à política que tem governado a ilha do Atlântico há 40 anos. Alberto João Jardim abandona o poder pela porta pequena. A certa altura parecia que podia fazê-lo de forma pomposa e marcante. Agora já parece ter caído no esquecimento e a memória que deixa no eleitorado, tanto regional como nacional, é o da fraqueza da sua governação nos últimos anos sob um rigoroso plano de ajustamento financeiro. Sobre o futuro, Jardim não mostra o jogo. Desengane-se quem imagina que já não dará cartas. Limitou-se simplesmente a subir a parada e o seu percurso de ora em diante terá olhos em Portugal Continental e quiçá em Belém. Talvez tenha um par de ases na mão. Ninguém sabe. Só ele. Os alquimistas que se ponham a pau.

A hora mudou na Madeira. Literalmente e figuradamente. Mudou também para Naide Gomes, que se viu forçada a dar um ponto final numa carreira marcada por grandes conquistas mas também por grandes lesões. Naide Gomes tinha fibra e atitude para dar ainda mais a Portugal, mas a sorte não lhe sorriu. Tudo o que deu, todavia, é inteiramente meritório e muito mais do que o país merece, um país que tem futebol por sinónimo único de desporto. A hora também mudou para Herberto Hélder. O poeta maior português e madeirense faleceu com 84 anos. A cultura portuguesa ficou novamente mais pobre. Considerado por muitos como o maior poeta português da segunda metade do século XX, Herberto Hélder raramente aparecia em público. Era o verdadeiro autor e pensador. Vivia e fazia viver através das suas palavras. E bastava. Não queria saber de alquimias ou de alquimistas. A sua preocupação era a da vida e da morte. Sobre esta, disse “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!”. A fossa que não é a mesma que leva fezes com ouro. A fossa que é o vazio de uma vida que não deixa caminho nem memória, que não deixa o cunho da sua existência.

Para esta fossa mandou Andreas Lubitz 149 pessoas. Não se mandou a si porque queria ter nome, queria ser reconhecido, e ficou efectivamente na mente de todos, vergonha maior da sua família, da sua terra, do seu país e do mundo. Durante 8 minutos, Andreas Lubitz deixou que a sua crise existencial tomasse conta das vívidas existências de 149 inocentes, entre os quais duas novas vidas e dezasseis vidas promissoras. Conforme se vai sabendo mais sobre os fatídicos 8 minutos em que o avião da Germanwings esteve em queda até à atroz destruição nos Alpes, conforme se vai sabendo mais sobre o jovem co-piloto, mais aterrador se torna tudo. Como é que podemos garantir que estamos livres de mentes e de pensamentos como os de Lubitz? Como é que podemos garantir que, num carro, num autocarro, num comboio, num avião ou num barco, estamos seguros, não da componente técnica que jamais é infalível, mas da mente perturbada, da mente que sente que o seu mundo não é real e que por isso mesmo, no mais puro egoísmo, julga, porque se vê mais iluminado, que o mundo dos outros também não existe? Não é com a nova obrigatoriedade de haver sempre dois membros da tripulação no cockpit e com outras medidas semelhantes que se vai atingir esta segurança. É garantido que a nossa sociedade como um todo evolui, que nos transcendemos para um pensamento superior. É garantindo que quando a hora mudou, apenas a hora muda. Que apenas amanhece mais tarde e a luz do dia dura mais tempo. É garantindo que todos temos consciência da importância e do lugar dos outros no mundo, com ou sem ouro.    
                           

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