sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O dia do dragão

O Rei está morto. Longa vida ao Rei. Assim se fizeram muitas passagens de poder na Idade Média. Tantos séculos depois, ouço novamente no ar esta evocação. E parece-me que traz toda a instabilidade que marcou aquela época. Traz reinados; reis, imperadores e fidalguias aparentes. Traz contendas por linhas e fronteiras e ameaças e sanções que anseiam passar da palavra à arma. Lembra-me de Napoleão no seu cavalo branco; das inúmeras palavras de ordem que gritou do selim dourado. Ardeu o mundo num rebuliço sem fim e ficou diferente para sempre. O novo rei já não gritará de um cavalo branco, onde poderia apanhar frio. Terá uma casa branca, de cal bem nutrida, para gritar palavras de desordem. Mais parecerão napalm, como o fogo de um dragão que passou da mitologia à realidade. Na Idade Média havia cavaleiros valentes e honrados que se dedicavam exclusivamente à caça do dragão e ao resgate de donzelas em perigo. Mas o cavaleiro da nossa modernidade, que veste de preto, está de saída, reformado e cansado, e não haverá quem o renda para caçar o que andará à solta nos corredores da casa que é toda branca.

Se não haverá cavaleiro para caçá-lo, talvez seja possível treiná-lo. Mas receio que esta maluca ideia de treinar dragões pertença exclusivamente ao cinema de animação ou àquelas produções cinematográficas de qualidade duvidosa que sugerem um dragão com um coração mole. Não. Este dragão nasceu numa fervura de raiva geracional que fará jus à representação tolkiena. Os seus dentes serão espadas. As suas garras serão lanças. O choque da sua cauda será como um raio. As suas asas serão um furacão. E a sua respiração será como a morte. Assim será o dragão da casa branca, grande e portentoso; aquele que lançará uma enorme e fria sombra sobre todo o mundo. Mal nascido ainda, já pôs todo o mundo de alerta. Há os que já repudia e ameaça, mormente reinos do oriente onde já foi grande figura, e os que lhe são muito queridos, como o reino do norte, onde o gelo manda e o folclore é diferente. Estranha-me particularmente esta relação com o norte. Talvez o reino do gelo tenha algum poder mágico sobre o dragão. Talvez, através de encantamentos e poções verdes à base da favorita bebida branca, tenha colocado uma mordaça invisível e um chicote fustigador que assobiará pelo ar se o dragão alguma vez se tentar libertar das amarras.  

Ouvi dizer que há uma mãe de dragões que sabe como controlá-los. Também tem o poder para debelar ameaças que vêm do norte, de terras de gelo sem fim que querem espalhar os seus terríveis rigores pelos mundos conhecidos. Se ao menos tivéssemos entre nós uma mãe dessas, quebradora de correntes... Consta que pertence ao reino mítico da televisão e que ainda não será desta que quebrará a quarta barreira. Resta-nos pensar noutras formas para combater o dragão. Já muito anunciou fazer e desfazer. Quer tirar direitos e ajudas, colocar tributações e construir muralhas. Talvez ainda mande fazer um fosso à volta para que ninguém chegue perto da sua casa, com daqueles crocodilos que comem pessoas inteiras e que choram gordas lágrimas enquanto o fazem. O dragão da casa branca, porque tem asas, nunca terá problemas com os crocodilos; poderá voar para onde quiser. Haverá de ir ao reino do norte, que tem um rei que também gosta de andar a cavalo, mormente de tronco nu olimpiano, e nunca aos do oriente, pois predizem muitas calamidades e este dragão não quer saber de metáforas.

Hoje o é o dia do dragão. Tem vindo a cuspir fogo em textos pequenos de 140 caracteres, enquanto se prepara. A partir de hoje poderá cuspir fogo pelos mares, pela terra e pelos céus. Se tivesse sete cabeças e dez chifres, diria que o apocalipse bíblico está sobre todos nós. Até pode estar, porquanto, convenha a verdade, todos ainda desconfiamos da natureza do couro cabeludo que reveste o dragão e não há como provar se debaixo da coroa dourada que a partir de hoje será de rei novo não se esconderão precisamente dez chifres e sete cabeças. Não temos a mãe dos dragões, nem o cavaleiro deposto; quem tomará conta desta besta? É rezar pelo melhor, mudar-nos para numa montanha e esperar pelo fim da tempestade de fogo. Há-de haver mais mundo para além do dragão.

    

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