sábado, 21 de março de 2020

O estado de emergência e a emergência do nosso estado



Há muito tempo que não coloco em palavras os pensamentos que me atravessam. Tenho privilegiado a escuta e a leitura, as opiniões da sociedade civil e da sociedade científica que explodiram nas duas últimas semanas como um rio que se viu libertado do seu estrangulamento. Escutar é tão ou mais premente do que ser escutado, particularmente neste gigantesco tempo de incerteza. Quebro a minha posição por sentir urgente a necessidade de discorrer sobre o que se avizinha.

Em primeiro lugar, jamais discordarei de que a salvaguarda da vida é o dever pilar de qualquer Estado, sem o qual nenhum poderá continuar a existir. Mas salvaguardar a vida é muito mais do que a vida física, essa que tem sido a única solicitação da sociedade. Sei que vivemos num tempo de excepção. Mas onde termina a excepção e começa o hábito? Onde fica o espaço para a moderação e a prudência? Saberemos realmente o que significa um estado em emergência; abdicar voluntariamente dos nossos direitos fundamentais? Se a nossa primeira resposta ao medo colectivo é abdicar de tudo o que temos, o que diz sobre nós?

A desconfiança que afronta o nosso povo começa a criar fracturas que não serão fáceis de debelar. O mesmo povo que há semanas atrás denunciava o caso de racismo no nosso campeonato de futebol agora compra no supermercado muito mais do que precisa, nada deixando, por exemplo, para os profissionais de saúde que se vêem perante prateleiras vazias no fim dos seus turnos (não basta bater palmas às dez da noite); impacienta-se nas filas das farmácias, aceitando agiotagem por medicamentos de que não precisará; julga e condena aqueles que ainda procuram trabalhar e produzir pelo seu sentido de necessidade e compromisso. E, num caso que me é próximo, manda fechar o aeroporto da Madeira e expulsar todos os turistas; impede-os sequer de entrar nos autocarros, os mesmos turistas que foram e têm sido o ganha-pão de toda a ilha, como bichos enfermos, leprosos que não querem ter perto, mas fechados a sete chaves num sanatório.   

Não podemos, mesmo num estado de emergência, deixarmos de ser quem somos. Temos o dever de nos adaptarmos às condições excepcionais, mas também o dever de mantermos a nossa essência. Ou será que o medo é mesmo mais forte do que nós? Ninguém duvide de que os próximos meses colocarão à prova a nossa resiliência. Por um lado, o isolamento que durará várias semanas (desconfio sobremaneira que largos meses) originará debilidades físicas e mentais. Depois, a impaciência pelo adiamento do regresso à normalidade encaminhará à desobediência e à desordem civil. E o aumento do número de casos de infectados e óbitos colocar-nos-á ainda mais na disposição de cedermos os nossos direitos; mas cada vez com mais sedição pela própria sociedade.

O nosso modo de vida acabou. Esta tem que ser a primeira assimilação. As fronteiras que hoje se erguem por todo o mundo, os direitos que se suprimem, as economias que se encolhem e comprimem; nenhum regressará como era. Se não estivermos preparados para a mudança que já está a concretizar-se, perderemos muito mais do que as vidas dos nossos concidadãos. Perderemos a nossa essência. Este é o tempo que aqueles que, como eu, apoiam um mundo livre, globalizado, tolerante e democrático sempre temeram. O tempo da desconfiança, do medo e da submissão. Um tempo que se fortalecerá nesta crise de saúde pública e que ganhará fôlego na crise que vem a seguir.

Há outro perigo à espreita: um tsunami que já levou toda a água das nossas praias e começa a lançar a sombra da sua enorme onda sobre nós. O tsunami económico. Convenhamos: esta será a verdadeira crise que colocará em causa a nossa vida, a nossa forma de viver; que exige uma panóplia de salvaguardas que nem o nosso Estado, nem outros Estados, estão preparados e habilitados a dar. Irá provocar óbitos (provavelmente mais do que o COVID-19, mas sem a contagem oficial), irá destruir famílias, irá trazer fome, miséria e causar um sem-número de sem-abrigos. Vai fortalecer o nacionalismo, conforme cada nação procurará reerguer-se primeiro a si própria. Esta tinha que ser a hora da Europa, da União Europeia, do sonho europeu tão frequentemente falado e fugazmente vislumbrado. Mas a Europa, a ideia de um povo europeu uno, desertou-se em poucos dias. E mesmo uma resposta coordenada da União Europeia e das instituições internacionais já não será suficiente.

Numa semana apenas, a nossa economia puxou travão a fundo. O terceiro sector, particularmente nos serviços e na restauração, está por um fio. Já há despedimentos, lay-offs e abusos dos direitos laborais. Há sítios que fecharam e não voltarão a abrir portas, por mais que os avisos prometam um regresso breve. Não vão. Não haverá dinheiro. Portugal não tem dinheiro para sustentar uma economia suspensa durante vários meses. Muito daquilo que hoje fecha, fecha permanentemente. Com o terceiro sector debelado, a pressão recairá sobre o segundo sector, a reduzir a sua produtividade, e com isso a mais despedimentos; e depois sobre o primeiro, o mais essencial – mesmo com supermercados lotados de açambarcadores, já não há restaurantes para comprar a produção que dava o lucro aos pequenos produtores.

Termino com o receio de que não saibamos ver o panorama completo. Que não sejamos capazes de avaliar as decisões do Estado num contexto temporal alargado. Que abdiquemos dos nossos direitos fundamentais por causa do medo, ainda que fundamentado. Não há medo pior do que o medo da morte colectiva. O país deve parar no que for possível parar; devemos ficar em casa sempre que nada de outra premência se coloque; mas não podemos parar tudo, sob risco de não nos levantarmos tão cedo. Por muito que faça, coisas boas e coisas más, um Estado nunca sairá de cara limpa de uma crise destas. E não havendo compreensão por parte daqueles que exigem medidas duras e rápidas sem assimilarem a durabilidade desta batalha, abre-se o caminho para o populismo e para o extremismo; na fúria daqueles que hoje pedem o encerramento total e amanhã exigirão o seu rendimento, daqueles que consideram apenas a sua própria sobrevivência. O populismo de oportunismo atroz floresce naturalmente nas piores crises – atentemos ao fascismo na Europa após a crise dos anos 30, e tenhamos muito cuidado.

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