Há muito tempo
que não coloco em palavras os pensamentos que me atravessam. Tenho privilegiado
a escuta e a leitura, as opiniões da sociedade civil e da sociedade científica que
explodiram nas duas últimas semanas como um rio que se viu libertado do seu
estrangulamento. Escutar é tão ou mais premente do que ser escutado,
particularmente neste gigantesco tempo de incerteza. Quebro a minha posição por
sentir urgente a necessidade de discorrer sobre o que se avizinha.
Em primeiro
lugar, jamais discordarei de que a salvaguarda da vida é o dever pilar de
qualquer Estado, sem o qual nenhum poderá continuar a existir. Mas salvaguardar
a vida é muito mais do que a vida física, essa que tem sido a única solicitação
da sociedade. Sei que vivemos num tempo de excepção. Mas onde termina a
excepção e começa o hábito? Onde fica o espaço para a moderação e a prudência?
Saberemos realmente o que significa um estado em emergência; abdicar
voluntariamente dos nossos direitos fundamentais? Se a nossa primeira resposta
ao medo colectivo é abdicar de tudo o que temos, o que diz sobre nós?
A desconfiança
que afronta o nosso povo começa a criar fracturas que não serão fáceis de
debelar. O mesmo povo que há semanas atrás denunciava o caso de racismo no
nosso campeonato de futebol agora compra no supermercado muito mais do que
precisa, nada deixando, por exemplo, para os profissionais de saúde que se vêem
perante prateleiras vazias no fim dos seus turnos (não basta bater palmas às
dez da noite); impacienta-se nas filas das farmácias, aceitando agiotagem por
medicamentos de que não precisará; julga e condena aqueles que ainda procuram
trabalhar e produzir pelo seu sentido de necessidade e compromisso. E, num caso
que me é próximo, manda fechar o aeroporto da Madeira e expulsar todos os
turistas; impede-os sequer de entrar nos autocarros, os mesmos turistas que foram
e têm sido o ganha-pão de toda a ilha, como bichos enfermos, leprosos que não
querem ter perto, mas fechados a sete chaves num sanatório.
Não podemos,
mesmo num estado de emergência, deixarmos de ser quem somos. Temos o dever de
nos adaptarmos às condições excepcionais, mas também o dever de mantermos a
nossa essência. Ou será que o medo é mesmo mais forte do que nós? Ninguém
duvide de que os próximos meses colocarão à prova a nossa resiliência. Por um
lado, o isolamento que durará várias semanas (desconfio sobremaneira que largos
meses) originará debilidades físicas e mentais. Depois, a impaciência pelo
adiamento do regresso à normalidade encaminhará à desobediência e à desordem
civil. E o aumento do número de casos de infectados e óbitos colocar-nos-á
ainda mais na disposição de cedermos os nossos direitos; mas cada vez com mais
sedição pela própria sociedade.
O nosso modo
de vida acabou. Esta tem que ser a primeira assimilação. As fronteiras que hoje
se erguem por todo o mundo, os direitos que se suprimem, as economias que se
encolhem e comprimem; nenhum regressará como era. Se não estivermos preparados
para a mudança que já está a concretizar-se, perderemos muito mais do que as
vidas dos nossos concidadãos. Perderemos a nossa essência. Este é o tempo que
aqueles que, como eu, apoiam um mundo livre, globalizado, tolerante e
democrático sempre temeram. O tempo da desconfiança, do medo e da submissão. Um
tempo que se fortalecerá nesta crise de saúde pública e que ganhará fôlego na
crise que vem a seguir.
Há outro
perigo à espreita: um tsunami que já levou toda a água das nossas praias e
começa a lançar a sombra da sua enorme onda sobre nós. O tsunami económico. Convenhamos:
esta será a verdadeira crise que colocará em causa a nossa vida, a nossa forma
de viver; que exige uma panóplia de salvaguardas que nem o nosso Estado, nem
outros Estados, estão preparados e habilitados a dar. Irá provocar óbitos
(provavelmente mais do que o COVID-19, mas sem a contagem oficial), irá
destruir famílias, irá trazer fome, miséria e causar um sem-número de
sem-abrigos. Vai fortalecer o nacionalismo, conforme cada nação procurará reerguer-se
primeiro a si própria. Esta tinha que ser a hora da Europa, da União Europeia,
do sonho europeu tão frequentemente falado e fugazmente vislumbrado. Mas a
Europa, a ideia de um povo europeu uno, desertou-se em poucos dias. E mesmo uma
resposta coordenada da União Europeia e das instituições internacionais já não
será suficiente.
Numa semana
apenas, a nossa economia puxou travão a fundo. O terceiro sector,
particularmente nos serviços e na restauração, está por um fio. Já há
despedimentos, lay-offs e abusos dos direitos laborais. Há sítios que fecharam
e não voltarão a abrir portas, por mais que os avisos prometam um regresso
breve. Não vão. Não haverá dinheiro. Portugal não tem dinheiro para sustentar
uma economia suspensa durante vários meses. Muito daquilo que hoje fecha, fecha
permanentemente. Com o terceiro sector debelado, a pressão recairá sobre o
segundo sector, a reduzir a sua produtividade, e com isso a mais despedimentos;
e depois sobre o primeiro, o mais essencial – mesmo com supermercados lotados
de açambarcadores, já não há restaurantes para comprar a produção que dava o
lucro aos pequenos produtores.
Termino com o
receio de que não saibamos ver o panorama completo. Que não sejamos capazes de
avaliar as decisões do Estado num contexto temporal alargado. Que abdiquemos
dos nossos direitos fundamentais por causa do medo, ainda que fundamentado. Não
há medo pior do que o medo da morte colectiva. O país deve parar no que for
possível parar; devemos ficar em casa sempre que nada de outra premência se
coloque; mas não podemos parar tudo, sob risco de não nos levantarmos tão cedo.
Por muito que faça, coisas boas e coisas más, um Estado nunca sairá de cara
limpa de uma crise destas. E não havendo compreensão por parte daqueles que
exigem medidas duras e rápidas sem assimilarem a durabilidade desta batalha, abre-se
o caminho para o populismo e para o extremismo; na fúria daqueles que hoje
pedem o encerramento total e amanhã exigirão o seu rendimento, daqueles que
consideram apenas a sua própria sobrevivência. O populismo de oportunismo atroz
floresce naturalmente nas piores crises – atentemos ao fascismo na Europa após
a crise dos anos 30, e tenhamos muito cuidado.
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