O Orçamento de
Estado (OE) para 2016 foi aprovado na generalidade com um histórico “sim” das
esquerdas. António Costa anunciou que o OE representa o fim da austeridade. A direita
do espectro político acusou-o de a transferir. O Primeiro-Ministro explica que
a redução da sobretaxa e a reposição de pensões representa um virar efectivo de
página na austeridade. PSD e CDS apontam que o que o Governo reduz em sobretaxa
e repõe em pensões vai buscar a impostos acrescidos sobre o tabaco, produtos
petrolíferos (ISP) e impostos sobre lucros bancários (IS). Ambos estão errados
e certos ao mesmo tempo. Entre a retórica do Governo e a da Oposição mescla-se
a escolha quasi-ideológica entre impostos directos e indirectos, uma visão de
filosofia económica entre a emancipação fiscal e o feudalismo tributário.
Os impostos
directos são aqueles que incidem directamente sobre o rendimento, quer das
pessoas singulares (IRS) quer das pessoas coletivas (IRC). Os impostos indiretos
são aqueles que incidem sobre o consumo ou a despesa, incidindo sobre a
generalidade dos bens que consumimos diariamente (e.g. IVA, ISP, IS). O OE de
2016 prevê a redução de IRS (na sobretaxa criada em 2011) e o aumento de ISP e
IS. Há efectiva redução de austeridade ou transferência desta? Depende. Depende
da forma como olhamos para a tributação. A minha crença é de que qualquer
redução em impostos directos se traduz numa efectiva redução de austeridade
pelo simples facto de que o contribuinte ganha maior autonomia sobre o seu
rendimento. Enquanto os impostos directos são comummente aplicados com retenção
na fonte (compreendendo a diferença entre o nosso salário bruto e o salário
líquido), os indirectos existem apenas e no momento em que alguém consume
determinado bem, pagando no preço o respectivo imposto sobre o valor
acrescentado. No limite utópico em que a totalidade de impostos directos são
substituídos por impostos indirectos, ceteris
paribus, se nada se consumir não haverá lugar a tributação. A opção de
sermos ou não tributados, e a extensão desta, está alinhada com o nosso perfil
de consumo.
A “bondade”
dos impostos é indiscutível. Sem impostos, a sociedade não funciona. Sem
receita, nenhum Estado pode facilitar à sua população serviços de valor
acrescentado que não existiriam se dependentes da vontade individual. Mas o
princípio de que o Estado se apodera de um terço do trabalho de alguém só
porque as regras e o facilitismo assim o determinam lembra um agrilhoado
sistema medieval, feudalista, em que o simples servo entrega parte da sua
produção, dos seus herculanos esforços ao sol, à chuva e ao incontrolável suor,
ao senhorio, à nobreza ou à realeza, que têm poder para assim deliberar, sem manobras
impugnatórias. O sistema feudal da Idade Média pautava-se por capitações,
banalidades e talhas. Tantos anos volvidos, o sistema não mudou, apenas se
transfigurou. O trabalhador já não entrega um terço da sua produção ao
senhorio, mas entrega um terço do seu rendimento ao Estado. O trabalhador já
não paga banalidades para usar moinhos, fornos e pontes, mas paga taxas
moderadoras para ir a um hospital, propinas para frequentar o Ensino Superior e
portagens para usar pontes e estradas. O imposto adaptou-se à industrialização
e à terciarização, mas não se modificou na sua essência. E é por o sistema
fiscal actual partir de um princípio errado que agora reflicto sobre ele. É
necessário partir progressivamente para um sistema fiscal mais musculado,
assente no imposto indirecto e no perfil de consumo, com os inerentes ajustamentos
inflacionários e dedutivos.
Com impostos total
ou maioritariamente indirectos, não obstante percentualmente mais elevados a
fim de conservar a receita fiscal do Estado, as famílias terão mais rendimento
disponível. Poderão aplicá-lo em consumo. Ou não. Têm essa autonomia. A aplicação
de impostos mais altos sobre bens de luxo e mais baixos sobre bens de primeira
necessidade salvaguarda a tributação progressiva, no princípio de que o perfil
de consumo varia consideravelmente das franjas mais altas às mais baixas da
sociedade. Aqueles com mais rendimento consumirão em tese mais e mais em bens
de valor acrescentado. Por outro lado, perante uma inesperada dificuldade
financeira, um indivíduo poderá optar por refrear o seu consumo, ou alterar a
tipologia de bens consumidos, ao passo que o imposto directo, retirando
rendimento independentemente da condição financeira no momento da retenção, reduz
consideravelmente esta alternativa.
Voltando ao OE
de 2016, António Costa está correcto quando anuncia a redução da austeridade.
Efectivamente, com menor retenção na fonte, o rendimento das famílias aumenta.
Se depois este aumento se perde ou não no consumo, é uma escolha das famílias.
O argumento rapidamente surgirá de que poucos ou ninguém pode evitar o imposto
sobre produtos petrolíferos e o imposto de selo que agora aumentam. Mas tem em teoria
a capacidade de evitar se eleger outro meio de transporte ou evitar o recurso a
créditos bancários. Pode não ser prático, mas a passagem dessa retenção na
fonte para uma retenção no momento do consumo significa um progresso no sentido
da emancipação fiscal. Já não falamos em austeridade, mas em restrições. Já não
perdemos uma parte do rendimento só porque sim. Perdemos porque aceitamos as
condições para um determinado tipo de consumo.
Algum dia
deixaremos os impostos directos para trás? Dificilmente. São mais fáceis de
aplicar, de corrigir e de fiscalizar. Nenhum trabalhador se pode isentar. É a
condição mínima de trabalho. Mas continuaremos dispostos a uma tributação intrinsecamente
feudatária? Tenho dúvidas… Se calhar nada nesta reflexão faz sentido e
facilmente se reunirá um conjunto de fortes evidências a favor dos impostos
directos. À cabeça penso na simplicidade em determinar a carga contributiva de
cada um e o risco de o incremento no rendimento potenciar a economia paralela. Fica
a minha mea culpa. Mas se este
desabafo faz ponderar minimamente, então não se trata meramente de um estranho fait divers que hoje adula esta página,
desprovido de qualquer mérito. E isso já é um notável avanço.