domingo, 21 de agosto de 2016

Appelo virtual

Foi a imagem da semana. Será uma das imagens do ano, uma imagem que encapsula mais de cinco anos de guerra civil entre grupos armados, forças rebeldes e militares, aliados internacionais e facções terroristas, um conflito permanente por um pedaço de terra já irreconhecível e quase inabitável. A imagem de Omran Daqneesh, um menino de cinco anos sentado numa ambulância, coberto de sangue, mazelas e sujidade imediatamente após o resgate dos escombros de outro raide aéreo na destroçada cidade de Aleppo. O olhar distante que parece separar um mundo inteiro a ambulância da dor silenciosa de Omran. Sobrevivente fortuito de um indiferente ataque que vitimou cinco crianças, entre elas o seu irmão mais velho, o olhar de Omran, dividido entre a abertura total do olho direito e o semicerrar forçado por um inchaço do olho esquerdo, conta toda uma história que o mundo tem continuamente ignorado; contem a revolta das milhares de vítimas incógnitas da guerra civil da Síria, homens, mulheres e crianças que nunca receberam um palavra de conforto do mundo que as esqueceu.

A incontornável imagem de Omran Daqneesh percorreu o mundo inteiro. Multiplicou-se pelas redes sociais onde ganhou vida própria, noutra demonstração do poder da viralização que se tornou habitual nos nossos dias. Estranhamente, levantaram-se várias opiniões depreciativas, opiniões que apontaram o dedo ao acto da partilha instantânea sem grande reflexão; às partilhas com frases de ocasião e emojis de tristeza. Sim, muitos partilharam a foto de Omran sem conhecimento ou real preocupação pela guerra da Síria. Sim, muitos limitaram-se a dar seguimento a uma corrente viral, como já antes tinham feito com a imagem do corpo de uma criança na costa da cidade turca de Bodrum que evidenciou a face mais cruel da crise migratória na Europa. Sim, muitos limitam-se a momentos instantâneos de partilha e a breves lamentos, após o que resumem rapidamente o seu quotidiano sem tornarem a pensar na aflição das gentes que por um instante consideraram seriamente.
 
Esquecemo-nos daquele breve lamento que tomou apenas uma mão cheia de segundos, entre o clique na foto e no botão de partilha. Voltamos rapidamente às nossas preocupações e aos nossos problemas. Mas não o fazemos porque não nos preocupamos verdadeiramente com a guerra na Síria e com os outros conflitos e flagelos que se propagam um pouco por todo o mundo como doenças contagiosas. Resumimos rapidamente o nosso quotidiano porque é o que nos resta fazer. Porque a distância para os conflitos é enorme, porque os nossos lamentos se perdem rapidamente na nossa inabilidade para agir e resolver. Porque sozinhos não persuadimos nem influenciamos a tomada de decisão. Sozinhos, podemos tão-somente partilhar o nosso sentimento, mostrar brevemente a nossa dor pela real dor das incontáveis vítimas. Sozinhos, podemos apenas fazer clique na foto e no botão de partilha. Não vamos mudar o destino da guerra. Não vamos salvar vidas. Não vamos proporcionar a paz. Resumimos, portanto, o nosso quotidiano porque só nos resta isso.   

Será errado que, na nossa óbvia e trágica inabilidade para agir e resolver, partilhemos imagens da dor, dos horrores e dos terrores que não compreendemos totalmente? Será errado mostrar que estamos com aqueles que sofrem, que passam horrores e privações indescritíveis, mesmo que apenas por uma mera mão cheia de segundos? Será errado fazer parte de uma corrente viral que leva uma imagem incontornável, uma imagem que encerra uma guerra inteira, a todos os cantos do mundo? Será errado fazer parte de uma corrente alimentada por vozes e lamentos solitários contaminados pela trágica inabilidade para agir e resolver que pode eventualmente chegar àqueles com real poder de influência e decisão, às autoridades e aos grupos não-governamentais que podem intermediar o fim do conflito, de todos os conflitos, e reunir a preciosa ajuda humanitária que reduz o sofrimento dos inocentes e dá um pouco de voz e alegria ao seu prolongado silêncio, que enche novamente de luz os seus olhares distantes que nos parecem separar um mundo inteiro da sua dor?

Sim, sozinhos não alteramos o rumo destrutivo dos acontecimentos, mas às tantas partilhas e aos tantos lamentos criamos pressão sobre aqueles que têm o dever de resolver. Participemos pois na viralização de imagens como a de Omran Daqneesh, porque uma imagem incontornável pode ser o mote para o processo de resolução, para a paz; porque o sofrimento hirto de Omran Daqneesh, eternizado naquele breve momento numa ambulância qualquer, pode finalmente interessar o mundo a envidar esforços para estancar a hemorragia da Síria e a pôr termo aos conflitos e flagelos que dominam aquela região.    



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