O Rei está morto. Longa vida ao Rei.
Assim se fizeram muitas passagens de poder na Idade Média. Tantos séculos
depois, ouço novamente no ar esta evocação. E parece-me que traz toda a
instabilidade que marcou aquela época. Traz reinados; reis, imperadores e
fidalguias aparentes. Traz contendas por linhas e fronteiras e ameaças e
sanções que anseiam passar da palavra à arma. Lembra-me de Napoleão no seu
cavalo branco; das inúmeras palavras de ordem que gritou do selim dourado.
Ardeu o mundo num rebuliço sem fim e ficou diferente para sempre. O novo rei já
não gritará de um cavalo branco, onde poderia apanhar frio. Terá uma casa
branca, de cal bem nutrida, para gritar palavras de desordem. Mais parecerão napalm,
como o fogo de um dragão que passou da mitologia à realidade. Na Idade Média
havia cavaleiros valentes e honrados que se dedicavam exclusivamente à caça do
dragão e ao resgate de donzelas em perigo. Mas o cavaleiro da nossa modernidade,
que veste de preto, está de saída, reformado e cansado, e não haverá quem o renda
para caçar o que andará à solta nos corredores da casa que é toda branca.
Se não haverá cavaleiro
para caçá-lo, talvez seja possível treiná-lo. Mas receio que esta maluca ideia
de treinar dragões pertença exclusivamente ao cinema de animação ou àquelas produções
cinematográficas de qualidade duvidosa que sugerem um dragão com um coração mole.
Não. Este dragão nasceu numa fervura de raiva geracional que fará jus à
representação tolkiena. Os seus dentes serão espadas. As suas garras serão lanças.
O choque da sua cauda será como um raio. As suas asas serão um furacão. E a sua
respiração será como a morte. Assim será o dragão da casa branca, grande e portentoso;
aquele que lançará uma enorme e fria sombra sobre todo o mundo. Mal nascido
ainda, já pôs todo o mundo de alerta. Há os que já repudia e ameaça, mormente
reinos do oriente onde já foi grande figura, e os que lhe são muito queridos,
como o reino do norte, onde o gelo manda e o folclore é diferente. Estranha-me particularmente esta relação com o norte. Talvez o reino do gelo tenha algum poder mágico sobre
o dragão. Talvez, através de encantamentos e poções verdes à base da favorita bebida
branca, tenha colocado uma mordaça invisível e um chicote fustigador que assobiará
pelo ar se o dragão alguma vez se tentar libertar das amarras.
Ouvi dizer que
há uma mãe de dragões que sabe como controlá-los. Também tem o poder para
debelar ameaças que vêm do norte, de terras de gelo sem fim que querem espalhar
os seus terríveis rigores pelos mundos conhecidos. Se ao menos tivéssemos entre
nós uma mãe dessas, quebradora de correntes... Consta que pertence ao reino
mítico da televisão e que ainda não será desta que quebrará a quarta barreira. Resta-nos
pensar noutras formas para combater o dragão. Já muito anunciou fazer e
desfazer. Quer tirar direitos e ajudas, colocar tributações e construir
muralhas. Talvez ainda mande fazer um fosso à volta para que ninguém chegue
perto da sua casa, com daqueles crocodilos que comem pessoas inteiras e que
choram gordas lágrimas enquanto o fazem. O dragão da casa branca, porque tem
asas, nunca terá problemas com os crocodilos; poderá voar para onde quiser.
Haverá de ir ao reino do norte, que tem um rei que também gosta de andar a
cavalo, mormente de tronco nu olimpiano, e nunca aos do oriente, pois predizem muitas
calamidades e este dragão não quer saber de metáforas.
Hoje o é o dia
do dragão. Tem vindo a cuspir fogo em textos pequenos de 140 caracteres,
enquanto se prepara. A partir de hoje poderá cuspir fogo pelos mares, pela
terra e pelos céus. Se tivesse sete cabeças e dez chifres, diria que o
apocalipse bíblico está sobre todos nós. Até pode estar, porquanto, convenha a
verdade, todos ainda desconfiamos da natureza do couro cabeludo que reveste o
dragão e não há como provar se debaixo da coroa dourada que a partir de hoje
será de rei novo não se esconderão precisamente dez chifres e sete cabeças. Não
temos a mãe dos dragões, nem o cavaleiro deposto; quem tomará conta desta
besta? É rezar pelo melhor, mudar-nos para numa montanha e esperar pelo fim da
tempestade de fogo. Há-de haver mais mundo para além do dragão.