Foi a imagem
da semana. Será uma das imagens do ano, uma imagem que encapsula mais de cinco
anos de guerra civil entre grupos armados, forças rebeldes e militares, aliados
internacionais e facções terroristas, um conflito permanente por um pedaço de
terra já irreconhecível e quase inabitável. A imagem de Omran Daqneesh, um menino
de cinco anos sentado numa ambulância, coberto de sangue, mazelas e sujidade
imediatamente após o resgate dos escombros de outro raide aéreo na destroçada cidade
de Aleppo. O olhar distante que parece separar um mundo inteiro a ambulância da
dor silenciosa de Omran. Sobrevivente fortuito de um indiferente ataque que
vitimou cinco crianças, entre elas o seu irmão mais velho, o olhar de Omran,
dividido entre a abertura total do olho direito e o semicerrar forçado por um
inchaço do olho esquerdo, conta toda uma história que o mundo tem continuamente
ignorado; contem a revolta das milhares de vítimas incógnitas da guerra civil
da Síria, homens, mulheres e crianças que nunca receberam um palavra de conforto
do mundo que as esqueceu.
A
incontornável imagem de Omran Daqneesh percorreu o mundo inteiro. Multiplicou-se
pelas redes sociais onde ganhou vida própria, noutra demonstração do poder da viralização
que se tornou habitual nos nossos dias. Estranhamente, levantaram-se várias opiniões
depreciativas, opiniões que apontaram o dedo ao acto da partilha instantânea
sem grande reflexão; às partilhas com frases de ocasião e emojis de tristeza. Sim,
muitos partilharam a foto de Omran sem conhecimento ou real preocupação pela
guerra da Síria. Sim, muitos limitaram-se a dar seguimento a uma corrente viral,
como já antes tinham feito com a imagem do corpo de uma criança na costa da
cidade turca de Bodrum que evidenciou a face mais cruel da crise migratória na
Europa. Sim, muitos limitam-se a momentos instantâneos de partilha e a breves
lamentos, após o que resumem rapidamente o seu quotidiano sem tornarem a pensar
na aflição das gentes que por um instante consideraram seriamente.
Esquecemo-nos
daquele breve lamento que tomou apenas uma mão cheia de segundos, entre o
clique na foto e no botão de partilha. Voltamos rapidamente às nossas preocupações
e aos nossos problemas. Mas não o fazemos porque não nos preocupamos verdadeiramente
com a guerra na Síria e com os outros conflitos e flagelos que se propagam um
pouco por todo o mundo como doenças contagiosas. Resumimos rapidamente o nosso
quotidiano porque é o que nos resta fazer. Porque a distância para os conflitos
é enorme, porque os nossos lamentos se perdem rapidamente na nossa inabilidade
para agir e resolver. Porque sozinhos não persuadimos nem influenciamos a
tomada de decisão. Sozinhos, podemos tão-somente partilhar o nosso sentimento,
mostrar brevemente a nossa dor pela real dor das incontáveis vítimas. Sozinhos,
podemos apenas fazer clique na foto e no botão de partilha. Não vamos mudar o destino
da guerra. Não vamos salvar vidas. Não vamos proporcionar a paz. Resumimos,
portanto, o nosso quotidiano porque só nos resta isso.
Será errado
que, na nossa óbvia e trágica inabilidade para agir e resolver, partilhemos imagens
da dor, dos horrores e dos terrores que não compreendemos totalmente? Será errado
mostrar que estamos com aqueles que sofrem, que passam horrores e privações indescritíveis,
mesmo que apenas por uma mera mão cheia de segundos? Será errado fazer parte de
uma corrente viral que leva uma imagem incontornável, uma imagem que encerra
uma guerra inteira, a todos os cantos do mundo? Será errado fazer parte de uma
corrente alimentada por vozes e lamentos solitários contaminados pela trágica inabilidade
para agir e resolver que pode eventualmente chegar àqueles com real poder de
influência e decisão, às autoridades e aos grupos não-governamentais que podem
intermediar o fim do conflito, de todos os conflitos, e reunir a preciosa ajuda
humanitária que reduz o sofrimento dos inocentes e dá um pouco de voz e alegria
ao seu prolongado silêncio, que enche novamente de luz os seus olhares
distantes que nos parecem separar um mundo inteiro da sua dor?
Sim, sozinhos
não alteramos o rumo destrutivo dos acontecimentos, mas às tantas partilhas e
aos tantos lamentos criamos pressão sobre aqueles que têm o dever de resolver.
Participemos pois na viralização de imagens como a de Omran Daqneesh, porque
uma imagem incontornável pode ser o mote para o processo de resolução, para a
paz; porque o sofrimento hirto de Omran Daqneesh, eternizado naquele breve
momento numa ambulância qualquer, pode finalmente interessar o mundo a envidar
esforços para estancar a hemorragia da Síria e a pôr termo aos conflitos e flagelos
que dominam aquela região.