sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Como comer um chapéu em 53 dias

4 de Outubro de 2015. 20 horas. Aníbal instala-se no sofá da sua humilde residência. Liga a televisor. Espreita rapidamente o relógio. Está perto da hora de vazio da sua tarifa bi-horária. Ainda dá para pagar as contas, pensa satisfeito. O televisor ilumina-se com o rosto do vencedor das legislativas. Pedrito é projectado como Primeiro-Ministro. Num raro trejeito, do qual o seu marcado rosto já não parece capaz, Aníbal sorri. “Ganhou mesmo! O Pedrito ganhou!”, espanta-se Maria, instalando-se ao lado do seu esposo com duas fartas tigelas de canja. “Valha-nos Fátima! Maria, valha-nos Fátima!” Maria agarra com força no seu terço e benze-se. “Traz o vinho, Maria. Ainda há um resto no pacote. Traz o vinho Maria. Hoje merecemos.” O vinho que sobrava era pouco, mas foi bastante para tingir de vermelho a canja fresca. Entre sugadas ruidosas, Aníbal e Maria jantam calmamente enquanto acompanham atentamente o desenrolar da noite eleitoral. A noite esfria e Maria levanta-se para ir buscar uma mantinha. Regressa. Enquanto estica bem a mantinha para cobrir completamente as suas e as pernas do marido, Aníbal solta uma gutural gargalhada. “Ai Maria, que choro de tanto rir! Este comentador pensa que o Costa ainda poderá unir-se à esquerda para ser Primeiro-Ministro.” Maria dá uma risada fina de boca fechada. “Mais depressa como um chapéu!” “Não te apoquentes”, acalma Maria. “O Pedrito ganhou e amanhã estás de folga.”

Dois dias mais tarde, Aníbal recebe Pedrito na sua casa maior, perto dos pastéis de nata famosos na zona de que tanto gosta. Pedrito traz-lhe meia dúzia. “Bom rapaz, como sempre”, agradece-lhe. “Ainda estão quentinhos. Ai, que ainda estão bem quentinhos!” Aníbal come o primeiro pastel em duas velozes dentadas. “Senhor Presidente,” começa Pedrito, “os resultados eleitorais foram claros. A PàF ganhou e ganhou bem. Sempre acreditei e agora é verdade. A nossa estratégia funcionou!” “Parabéns! Grande vitória!”, elogia Aníbal entre dentadas ao segundo pastel. “Até o Paulinho esteve bem.” “Aprendeste a domá-lo”, reconhece, virando-se para o terceiro pastel. Pedrito muda de tom e parece preocupado. “Os comunas e os bloquistas estão a planear uma moção de censura, Senhor Presidente.” “Não ligues a esses gajos. São brincadeiras. Fala mas é com o Costa. Não se demitiu e pode estar a aprontar alguma. Dá-lhe qualquer coisa, não vá o diabo tecê-las e ele ir na cantiga dos outros dois.”

Três dias depois, à saída do seu banho da tarde e ainda de roupão desapertado, Aníbal recebe um telefonema agitado. É Pedrito. “Senhor Presidente, o gajo está a gozar connosco. Só fala do plafonamento e enrola nos outros temas. E ainda diz às câmaras que o encontro foi inconclusivo!” “O Costa?”, questiona Aníbal, cobrindo-se finalmente. “Sim! Até já anda a encontrar-se com os outros. Senhor Presidente, não é possível que ele consiga ser Primeiro-Ministro, pois não?” “Respira fundo, Pedrito. Bebe um copo de vinho. Ninguém te vai tirar de São Bento.” “Eles juntos têm mais deputados”, recorda Pedrito num tom ofegante. “Podem aprovar uma moção de censura e entro automaticamente em gestão.” Aníbal franze o sobrolho. Não lhe tinha ocorrido isto. “Não vai acontecer nada. Como o meu chapéu!”, tranquiliza. “Na segunda vou reunir com ele e tiro-lhe essa ideia maluca da cabeça.”

A conversa com Pedrito está atravessada na goela de Aníbal, que passa todo o fim-de-semana aborrecido. Maria prepara rissóis de carne e de camarão e ainda traz do mercado presunto fumado, mas nada serve para acalmar Aníbal. Será mesmo possível que Costa se atreva a unir à esquerda para fazer cair o futuro governo de Pedrito? Aníbal vê-se à beira de um beco constitucional. Não pode voltar a convocar eleições e se uma moção de censura passa e o governo de Pedrito caí, Aníbal não tem muitas alternativas. “Maria, traz-me rennie”, pede a certa altura de Domingo, no fim de uma missa que passou na televisão. Aníbal mal dorme nesta noite. Quando Costa chega a Belém no dia seguinte, Aníbal recebe-o com um aperto de mão gélido. “Nem traz uns pastelinhos”, pensa para com os seus botões. Costa fala das legislativas, da sua visão para o futuro do país e das grandes divergências entre o seu partido e a coligação liderada por Pedrito. Aníbal sorri sempre, mas não ouve nada. Não quer saber das ideias de Costa para nada. “Os resultados eleitorais foram claros”, interrompe por fim, num tom duro. “Só posso ter uma leitura dos votos dos portugueses. Indigitarei o doutor Pedro Passos Coelho, vencedor das eleições, como é tradição.” “Pense bem, Senhor Presidente. Não se precipite”, aconselha Costa à saída. Aníbal faz orelhas moucas. Acredita que a dureza das suas palavras demoverá qualquer insurreição de Costa. Todavia, no dia seguinte, Pedrito volta a fazer um telefonema apoquentado. “Mais uma reunião infrutífera, Senhor Presidente. Não avançámos rigorosamente nada. Ele não quer entrar no nosso jogo. E eu não vou entrar no dele. Não reunirei mais. Peço desculpa, Senhor Presidente. Fiz o que podia. Compreendo se não quiser indigitar-me.” “Não digas disparates, Pedrito! Vão chegar amanhã os resultados finais e depois vou reunir com cada um. Vou pôr água na fervura. Esta rebeldia da esquerda é sol de pouca dura.” Pedrito fica mais reconfortado com as palavras de Aníbal e termina o telefonema num tom optimista, prometendo que vai começar desde logo a desenhar o seu executivo. “Maria, vai buscar-me um chá de camomilha que ainda me dá mais um mal com esta história toda. Traz-me um queijinho também para ajudar o chá a descer.”

Uma semana depois, Aníbal chama todos os partidos políticos à sua casa maior. Conforme recebe cada líder político no seu espaço e os cumprimenta com um aperto de mão seco, Aníbal desvia ansiosamente o olhar para as suas mãos. “Nenhum trás um pastelinho”, nota sempre com desagrado. Vale-lhe o comiserado pastel de Pedrito e a chamuça do Paulinho, um acto de respeito com que não está a contar, mas que até o safa de grande parte da conversa com o parceiro da coligação. Os representantes da esquerda voltam a alertá-lo de que é um desperdício de tempo indigitar Pedrito e que a esquerda tem uma solução de governação estável e douradora. Aníbal odeia ser apanhado nas suas próprias palavras. Mal fica sozinho e livre de mais desconfortáveis reuniões, telefona a Pedrito. “Prepara-te. Amanhã vou tornar oficial e para a semana vens cá assinar os papéis.” “E o Costa?” “Ele não tem coragem. Amanhã deixo mais alguns avisos no meu discurso e deve bastar. Ainda sou Presidente!”

Aníbal comunica a indigitação de Pedrito ao país no dia seguinte. “Em 40 anos de democracia nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças politicas anti-europeístas, isto é, de forças políticas que nos programas eleitorais em que se apresentaram ao povo português defendem a revogação do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental, da união bancaria, do pacote de estabilidade e crescimento, assim como o desmantelamento da união económica e monetária, a saída de Portugal do euro, para além da dissolução da NATO, organização de que Portugal é membro fundador.” Está feito e estão todos avisados. Aníbal respira finalmente fundo. “Não vou comer nenhum chapéu.” “Maria, prepara a sopa. Poupa no azeite; temos que continuar a apertar as nossas continhas”, sorri com alívio.

Sete dias após a tomada de posse do novo governo, o programa para a governação de Pedrito é entregue na Assembleia e Costa reúne as suas hordas para aprovar a moção de censura. Aníbal está consumido com as notícias. Já nem liga o televisor (assim ainda poupa mais um bocadinho nas continhas do mês). O chumbo do governo de Pedrito é quase certo na semana seguinte. Aníbal nem quer pensar nisto. Faz-lhe doer a cabeça e fica com azia após as refeições, particularmente quando Maria lhe prepara um bacalhau com cebolada. Pedrito liga uma dúzia de vezes durante o fim-de-semana, sempre preocupado com a discussão do programa que vai acontecer logo na segunda-feira. Aníbal promete fazer o que puder para mantê-lo em São Bento, nem que só em gestão. De início, Pedrito parece receptivo à ideia, mas nas últimas chamadas já vai dizendo que não fará nada de jeito com poderes limitados. Provavelmente pela primeira vez, Aníbal apercebe-se que entrou a direito no beco constitucional que pensava ter evitado. Se Pedrito cai e não aceita ficar em gestão, Aníbal não tem outra solução que não seja indicar Costa. Estará completamente encostado à parede. Aníbal mal pode crer. O coração começa a palpitar. “Maria, traz-me um xanaxzinho e uma fatia de bacon só para picar.” Não é que ainda comeria o chapéu?

O governo de Pedrito cai. Aníbal sente-se a ferver. Costa já fala como se fosse o próximo Primeiro-Ministro, mas Aníbal não está para aí virado. Tinha que haver outra solução. Falaria com quem tivesse que falar para encontrar essa alternativa. Começa com os patrões, que reafirmaram o seu apoio a Pedrito (também trazem croquetezinhos) e que se mostram preocupados com o esvaziamento da concertação social e com o fantasma da tributação de lucros. Recebe os sindicatos no dia seguinte. Não lhe trazem nada para petiscar e ainda exigem que indigite Costa o mais rapidamente possível. Mais valia nem tê-los convocado, pensa com irritação. Aníbal não quer saber de urgências. Planeia demorar o tempo necessário para procurar uma alternativa. Mas tem que se afastar daquele antro de intrigas. Logo no início da semana seguinte mete-se num avião com Maria e viaja para a Ilha da Madeira. Sentado à beira da janela só pensa no bolo do caco, na poncha, na espetada regional e nos docinhos de maracujá. Naquele instante, a queda de Pedrito já não é um tema. Não é durante dois dias, dois dias que passa ao sol morno e à boa comidinha quente.    

Tudo o que é bom acaba rapidamente e num piscar de olhos Aníbal já está novamente de regresso à sua casa maior. Na sua senda por uma solução alternativa, chama sete banqueiros. São os homens fortes do dinheiro e vão ter certamente uma posição clara sobre o tema. Conta convencê-los que manter Pedrito em gestão não é um mal tão grande como se pinta em todos os meios de informação, mas os banqueiros surpreendem-no com uma inclinação, ainda que ténue, para a indigitação de Costa. Aníbal afunda-se na sua cadeira. No dia seguinte recebe outras sete personalidades, agora economistas. Estes é que são os homens fortes dos mapas macroeconómicos. Estes é que sabem perfeitamente que a manutenção de Pedrito em gestão é um mal menor. Munidos de chouriços e farinheiras, mostram-se bastante cépticos quanto às propostas de Costa. Aníbal esfrega as mãos de contente. Ainda há uma esperança. No último dia da semana volta a receber os líderes políticos. Aníbal volta a olhar ansiosamente para cada um, mas só o Paulinho traz uma chamuça debaixo do braço. Pela primeira vez, Pedrito não traz nada. “Ora bolas”, estranha. Estranha ainda mais o discurso dele, no qual se mostra resignado e se recusa a ficar em gestão. “Não vale a pena, Senhor Presidente. Não quero ser carne para canhão. Dê lugar ao Costa. Em poucos meses cai e vamos já preparando a campanha.” Aníbal coça a testa fervorosamente. “Como chegámos a isto?… O que vale é que ainda conseguiste desfazer-te das avionetas. Pode ser que agora sirvam melhor comida do que aquelas sandoxas secas que me deram no outro dia.” Pedrito abandona a casa maior cabisbaixo. Aníbal está efectivamente encostado à parede. Pedrito não quer ficar em gestão e um governo da iniciativa de Aníbal será rejeitado prontamente. Resta Costa e apenas Costa. “Traz-me qualquer coisa, Maria. O que houver. Não aguento este vazio na barriga!”

Durante o fim-de-semana, Aníbal começa a escrevinhar o discurso para a inevitável tomada de posse de Costa. É o discurso mais crispado que alguma vez escreveu. Aníbal não consegue controlar as suas palavras. Saem carregadas de dureza, mas Aníbal não altera uma vírgula. Não quer saber. Quando termina o discurso, escreve uma carta a Costa dividida em seis pontos. Não serve para nada, mas talvez ainda consiga arreliar a corja toda. Reúne com Costa na segunda-feira. Vem sorridente e altivo, de quem já está indigitado. Aníbal aperta os seus punhos e morde os seus lábios. No fim da fria conversa, entrega-lhe a carta e manda-o embora. Costa está confuso. Pensou que ia ser indigitado naquele momento. Apressa-se a dar resposta por escrito a tudo no próprio dia. Aníbal nem abre a carta. Rasga-a em vários pedaços e atira-os para o lixo. Tenta ligar a Pedrito, que não atende nenhuma das suas chamadas. Aníbal compreende. Não há mais nada a fazer. No dia seguinte, à hora de almoço, indica por fim Costa para Primeiro-Ministro. “Traz-me canja, Maria. Sem vinho”, lamenta, o apetito perdido.

Na tomada de posse de Costa, Aníbal não consegue esconder todo o seu desconforto, toda a sua ira. Profere o seu discurso tal como o tinha escrito, no tom mais ríspido que consegue ter. Aníbal pode estar fora da luta, mas não se vai calar no tempo que lhe resta. Não vai permitir que Costa tenha uma vida fácil. Na viagem para casa, lembra-se da sua promessa no dia 4 de Outubro. “Maria, hoje janto chapéu”, avisa de forma amargurada. O que vale é que foi espairecer dois dias à Madeira e que o que mais há por lá é chapéus de palha. Trouxe um, se calhar precavendo-se para este fim, e ia comer este mesmo, porquanto era mais fácil de mastigar e ainda tinha um valor nutricional considerável.  



domingo, 15 de novembro de 2015

Somos todos terroristas

A negra sexta-feira 13 de Paris voltou a evidenciar que somos todos terroristas. Após os ataques à liberdade de informação perpetuados ao Charlie Hebdo, Paris voltou a ser palco de um depravado atentado à humanidade. Bombistas-suicidas e ataques com metralhadoras numa série de atentados que prostraram o coração da liberdade, da igualdade da fraternidade à inclemência do Estado Islâmico. As primeiras reacções em França e na Europa são alarmantes. Se a gravidade do ataque ao jornal satírico em Janeiro já tinha provocado um sério revés na reaproximação da cultura ocidental à cultura do médio oriente, a selvajaria do dia 13 deverá marcar a delapidação definitiva, introduzindo uma nova era de desconfiança, de vigilância sem escrúpulos, de acusação barata e da redução e completa eliminação de humanitarismo. Acabou-se a robustez que fez da Europa pós-Segunda Guerra um antro da justiça, da tolerância e da moderação. O terrorismo está a vencer. Está a vergar a Europa a um caminho sinuoso. Mas a vitória que começou em Charlie Hebdo não se esgotou no 13 de Novembro. É preparada há anos para vários anos, patrocinada pela própria Europa e pela inércia da sua acção, reforçada pelo desmazelo dos valores-chave da construção europeia, por uma sociedade que se julgou transcendida e que marginalizou durante anos os que ali não tinham origem. O terrorismo na Europa pertence à própria Europa. Foi na Europa que nasceu e que se espraiou como um cancro severo alimentado por comportamentos nocivos. Foi da Europa que partiu para uma viagem de amadurecimento ao Médio Oriente, à Síria e ao Estado Islâmico, de onde regressou por fim, fortalecido e focalizado, porquanto nesse meio tempo se continuou a discriminar e a ostracizar minorias.      

Não pode surpreender que os terroristas de Paris sejam de nacionalidade francesa ou de outra origem europeia. Admiramo-nos e questionamos o ódio pela própria nação. Temos dificuldade em compreender. Temos dificuldade em aceitar que alguém menosprezado pela sua própria sociedade se revolte tão agressivamente contra ela, sem temor pela sua própria vida, mortalmente frio com o dedo no gatilho ou no botão da cintura de explosivos. Temos dificuldade em ver para além do fundamentalismo cego, do ódio profundo e da insaciável sede de vingança. Perante o horror da carnificina, continuamos a fazer juras de mais desprezo e de mais desconfiança. Instigamos o ódio porque é com ódio que replicamos. Estão milhares de refugiados à nossa porta e estamos tentados a recusar a sua entrada porque tememos que, algures no meio da multidão desesperada que nada tem para além das roupas vestidas, haja um terrorista cheio de oportunidade. E nesse pensamento justamente criamos as condições para um que terrorista surja de verdade; criamos as condições para que uma criança inocente, mal compreendendo o que está a acontecer à sua volta, mal compreendendo porque é que nenhum daqueles homens vestidos militarmente lhes veda a entrada e não concede abrigo nem alimento, se hostilize com o tempo; criamos as condições para que esta criança inocente entre eventualmente na Europa de forma clandestina e se instale num bairro de clandestinos imperado pela pobreza extrema, pela ausência de oportunidades e de compreensão que a sociedade escolhe ignorar; criamos as condições para que o ódio pela sociedade se instale e cresça venenosamente, tornando aquela que fora outrora uma criança inocente às portas da Europa num alvo fácil para predadores de discursos extremistas; criamos as condições para que esta outrora inocente criança, acreditando acerrimamente que exerce a sua justiça, se faça explodir um dia numa multidão de inocentes ou erga uma metralhadora contra tudo o que vem pela frente, porquanto aos seus olhos toldados tudo o que vem pela frente esteve sempre contra ela.        


O nosso medo é a nossa derrota. A nossa indiferença é o nosso terrorismo. Nada justifica Paris. Não há condescendência nem compreensão possíveis. Mas temos que ver para além do ódio. Assistimos à tragédia em directo e multiplicámos até à exaustão os votos de pesar pelas redes sociais, adoptando as suas homenagens oportunamente preparadas de antevéspera. Dispáramos acusações sobre crenças e grupos religiosos que misturamos num só saco. Não nos esforçamos por compreender, por ver para além do ódio. Hoje é notícia, amanhã é reminiscência na cronologia de uma rede social. É mais fácil assim. É mais fácil dirigir o ódio para um grupo demarcado do que procurar a raiz perpetradora. É mais fácil dirigir o ódio do que, promovendo primaveras árabes, ajudar a sua transição, do que prestar atenção aos horrendos atentados em regiões de conflito, do que evitar que corpos de crianças continuem a dar à costa da ilha de Lebos e que barcos carregados se virem sobre si mesmos em águas gélidas e imperdoáveis. É mais fácil dirigir o ódio, não ver para além dele, ser indiferente e assistir à distância. É mais fácil pelo menos enquanto essa distância não é encurtada pelo hediondo terrorismo de quem transformou o seu desprezo constante numa luta armada, da fé cega e da obediência incomensurável. A resposta da coligação internacional provocará eventualmente o fim do Daesh e do seu terrorismo, mas outro movimento de outros actos bárbaros renascerá das suas cinzas enquanto se continuar a alimentar a indiferença pelo velho continente, enquanto se continuar a endurecer o discurso sobre migrantes e refugiados que procuram apenas a oportunidade para viver, para ter uma rotina e poder colocar um pão sobre a mesa a cada dia. Entrámos numa nova era onde todos somos terroristas, uns de armas, outros de comportamento. Não podemos deixar que o terror de hoje do problema de ontem torne o problema de hoje no terror de amanhã. É preciso readoptar os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade que os terroristas de Paris quiseram ver prostrados, agora com determinação ainda mais vincada, por todos e para todos para que o ódio seja por fim erradicado.