Se há algo de
positivo que se pode retirar das eleições é que parece ter finalmente renascido
em Portugal o pensamento político que estava francamente arredado das
preocupações dos portugueses desde a entrada na União Europeia. Curiosamente,
este pensamento político renascido em forma de fénix de cinzas troikanas e
austeras teve início no momento pós-eleitoral, no momento em que a vitória da
maioria transformada em minoria perdeu fulgor para uma surpreende maioria
partilhada de esquerda que, descomplexada das inconciliabilidades pré-queda do
Muro de Berlim, se apresenta finalmente disposta a um acordo governativo.
Curiosamente, o renascimento do pensamento político português teve início no instante
em que o eleitorado português perdeu o poder para decidir sobre a composição da
nova legislatura então eleita em sufrágio pouco concorrido. Agora que o sufrágio
está concluído e decidido, o sobressalto no meio político, nos órgãos de
comunicação social e nos abundantes opinion
makers é maior do que o que havia no momento pré-eleitoral. Também entre o
povo português, abstencionista em 44,14%, há muito sobressalto sobre o estado
político. Entre redes sociais e sítios na Internet de órgãos de comunicação
social, são inúmeras as opiniões, os desabafos e as acusações da direita à
esquerda do espectro político. O desacordo nunca foi tão grande. O nível de
insulto nunca foi tão feroz. A forma como os comentadores políticos têm
incendiado a opinião pública tem contribuído de forma determinante para o nível
de agressividade que se têm observado. É o efeito Bruno de Carvalho nos
meandros políticos.
O incêndio que
muitos comentadores têm regado com os seus poderosos agentes aceleradores tem
apenas um propósito subjacente: forçar a deliberação de qual ou quais são as
forças políticas que vão formar governo. Neste aspecto, é tão legítimo que a
PàF queira formar governo como é legítimo que o PS, coligado ou apoiado pelo BE
e pela CDU, tenha a mesma intenção. A Constituição Portuguesa permite esta
pluralidade de cenários governativos; de outro modo estaríamos ainda na
ditadura salazarista. Perante esta pluralidade, cabe ao Presidente da República,
e somente a ele, interpretar os resultados eleitorais e as intenções expressas
por cada partido com assento parlamentar. É certo que Cavaco Silva partilha a
filosofia política da direita portuguesa, que já por mais do que uma vez
liderou, mas também é certo que, em fim de legislatura e de ciclo político,
quer empossar um governo que dure mais tempo que o meramente necessário para
que o sucessor do Palácio de Belém tenha poder para convocar novas eleições. Não
obstante, e embora o silêncio ensurdecedor do Presidente da República, a sua
teimosia é reconhecida e qualquer que seja a ideia que lhe esteja a latejar na
cabeça (inflexão política ou escolha de estabilidade), será essa que tomará e
que levará a termo (ou ao termo do seu mandato).
Cavaco Silva sonhava
com o melhor dos dois mundos – governo estável de direita –, mas os portugueses
confrontaram-no com um mundo fragmentado. Em fim de mandato, nunca a sua
decisão foi provavelmente tão decisória nem tão determinante para a forma como
se encarará o seu período em Belém no futuro. E enquanto muitos se tentam sobrepor
ao seu silêncio, Cavaco Silva assiste atónito enquanto coça a cabeça às
reuniões entre partidos, entre sindicatos, as visitas a Bruxelas e a troca de
galhardetes em prime time e em notas editoriais. O que é que está a acontecer?
Como é que o monstro político despertou subitamente em Portugal? Porque é que
os portugueses não facilitaram a sua vida nas urnas? Quase que é preciso mais
uma reforma… Um governo estável de direita, à luz da governação dos últimos
quatro anos, é improvável e um de esquerda é historicamente complicado. A dor
de cabeça de Cavaco Silva é grande e o único paracetemol que lhe pode assistir
é António Costa. O grande derrotado das legislativas, segurou-se ao mastro e é
agora o grande decisor do diálogo pós-eleitoral. É como a rapariga que ninguém
queria pedir a mão mas que depois de se lhe descobrir a riqueza do dote todos
querem para noiva, havendo já quem esteja muito aborrecido e frustrado por não
lhe aceitar o anel (as expressões de Passos Coelho e Paulo Portas à saída da
última reunião eram tremendamente esclarecedoras). Entre acusações de golpe de
estado e incentivos à sua revolução, António Costa pavoneia-se como uma
carochinha de sorriso e intenções renascidas, como se o João Ratão que lhe
caíra no caldeirão de sopa às 20 horas do dia 4 de Outubro não tivesse afinal
morrido queimado. A campanha de António Costa começou efectivamente no momento
em que o último voto foi colocado na urna e ainda vai a tempo de ser legitimamente
indigitado Primeiro-Ministro.
Passos Coelho
e Paulo Portas jamais imaginavam tal braço-de-ferro. Abertamente derrotados há
um ano, surpreendentemente ressurectos há um mês, inesperadamente em posição de
fora-de-jogo há poucos dias, comportam-se como o lobo mau que comeu um boneco
em vez da avozinha. É batota, dirão provavelmente nos seus círculos
partidários. É política, pensarão com razão os seus opositores. Quem vai à
guerra dá e leva, adágio que não perde nenhum fulgor no campo de batalha de
Belém nem na tenda de recobro de São Bento. E enquanto vivemos uma versão bem portuguesa
de House of Cards, as presidenciais começam a ganhar tracção, mas o comboio
parece já ter chegado à estação de destino com o anúncio oficial da candidatura
de Marcelo Rebelo de Sousa, tão prepotente na sua declaração que motivou
despedida especial na TVI e afastou os notáveis do seu partido que já começavam
a fila à porta dos Pastéis de Belém. Poderá ser ele a decidir sobre a
legislatura a que Cavaco Silva não sabe como tirar o nó. Sob o seu mandato ou
de improvável outro, voltaremos quase certamente às urnas, desta vez embebidos
em pensamento político que renasceu como uma fénix e que por essa altura rasgará
céus.