Quando era
criança, eu e a minha irmã mais nova gostávamos de brincar a inventar castelos
e percursos de água na areia preta do quintal que o nosso pai um dia
improvisara com o material que lhe restava das construções que fazia por profissão.
À volta de uma velha e frondosa anoneira que nos brindava com uma plácida
sombra em dias de muito calor, construíamos trilhos com engenho e destreza,
erguendo pontes e abrindo lagos largos que imitavam a nossa imaginação do
mundo. Com os nossos próprios dedos, sem cansaço ou aversão, moldávamos todo o quintal
à nossa maneira. Quando os trilhos estavam prontos depois de um dia inteiro de
trabalheira, de roupa suja e de muita areia presa nas unhas, puxávamos a água
da mangueira e víamos com maravilhamento o mundo que criáramos ganhar vida. Não
havia maior satisfação do que aquela. Naquele momento eramos todo-poderosos. Eramos
donos do mundo. Daquele pequeno mundo de frágil areia. Era só nosso e eramos
nós quem ditava as suas regras. Naquele pequeno mundo habitariam todos os
pequenos seres que a nossa cabeça inventariava. Talvez ali vivessem elfos e
fadas. Talvez vivessem pequenos homens que desciam o trilho de água brava em jangadas
de folhas de anoneiras; construíam casas e castelos, aldeias e cidades e
prósperas sociedades que caberiam numa algibeira. Ao entardecer a brincadeira
terminava. A nossa mãe surgia para cortar a água e, com as mãos nas ancas na
sua famigerada posse de autoridade, para nos dar lições sobre custos e
desperdícios. Era mais uma lengalenga que pouco nos consumia e lá desfazíamos imediatamente
o nosso pequeno mundo de areia. Fazíamos ruir as pontes e cobríamos os lagos. Mas
não ficávamos tristes, porquanto no dia seguinte daríamos novamente vida a um
novo empreendimento. Era o ciclo das coisas. Aprendemos logo. Aprendemos ali
que tudo o que era construído haveria de ruir um dia para dar lugar a coisas
novas. Era mesmo assim que era e que seria para sempre enquanto os homens
caminhassem na terra. Era o que toda a gente nos dizia. E o nosso pequeno mundo
de areia mostrava-nos, nas suas diferentes existências, que era mesmo assim.
As nossas
brincadeiras não eram só construções de areia. Às vezes íamos em carreiras de
saudável rivalidade para debaixo de uma ponte feia que ficava perto de casa. O corgo, chamávamos-lhe. Ali acocorávamo-nos
à beira de um ribeiro que nascia algures na serra de loureiros, tintureiros e
acácias. Com considerável paciência, ficávamos entretidos durante um par de
horas a apanhar girinos com baldes e com as próprias mãos. Por vezes, e porque
era mais interessante e francamente mais fácil, apanhávamos a forma ainda
embrionária destes futuros batráquios e colocávamos em casa em baldes fundos
com água e lodo da própria ribeira. Todas as manhãs íamos logo ver como tudo estava.
Era a primeira coisa que fazíamos, mesmo antes de nos sentarmos para o
pequeno-almoço de copos de leite e deliciosas douradas. Os ovos minúsculos e
translúcidos dos batráquios abriam-se ao cabo de um ou duas semanas e os
girinos ziguezagueavam para fora. A primeira coisa que os recém-nascidos faziam
era conhecer todo o mundo que os acolhia e que não era mais do que um balde
fundo e opaco. Talvez na sua pequeneza vissem o mundo como algo misterioso e
infinito, com as suas fantasias e os seus segredos. Desconheceriam
provavelmente que afinal não passavam de uma experiência e da folia de duas
crianças igualmente inocentes, sem maldade, quiçá também elas dentro de um
balde de rochas e imponentes montanhas que era a bela ilha em que viviam. Para
aqueles girinos e para aquelas crianças, o mundo encerrava enigmas grandiosos.
Ao fim de alguns dias, os girinos começavam a mostrar sinais do seu rápido
desenvolvimento. Primeiro surgiam as patas de trás, de início duas dependências
ansiformes de aparência inútil que um dia se transformariam em duas robustas
patas posteriores que confeririam a estes pequenos seres o poder de saltar
quase cem vezes o seu tamanho. Depois as suas vistosas caudas encolhiam e surgiam
as patas anteriores. Por fim, a cauda desaparecia completamente e os girinos completavam
a sua metamorfose. Eram jovens sapos e o balde que tinha sido o seu mundo
inteiro durante toda a sua vida já não tinha mistérios nenhuns nem era
infinito. Era pequeno para os seus ensejos. Por mais que tentássemos mantê-los
no seu balde-mundo, cobrindo-o com lonas ou com as redes vermelhas de sacas de
batatas, os jovens sapos saltavam sempre para fora. Mais tarde ou mais cedo saltavam
quase cem vezes o seu tamanho para descobrir uma nova realidade, para alargar
as fronteiras do seu mundo e fazer cumprir as suas aspirações. Na verdade, não
iam para muito longe. Ficavam-se pelo ribeiro que corria mesmo ao lado da nossa
casa, mas para quem em toda a sua existência só tinha conhecido um balde fundo
era uma mudança monstruosa. Os jovens sapos ficavam a coaxar pelas noites fora,
enquanto faziam a sua vida e as suas escolhas. Nenhum deles alguma vez
regressou. Ficávamos sempre tristes, eu e a minha irmã mais nova. Depois de
tanta dedicação nossa, os jovens sapos tinham ido embora sem hesitar. A nossa
irmã mais velha, que diferenciava de nós alguns anos de idade, chegava das suas
tardes com cafés e amizades a tempo de nos acalmar. Ela, que era mais sapiente,
que entrevia um mundo maior e que já tinha passado por todos os nossos
dissabores, fazia-nos ver que era mesmo assim. Era o ciclo das coisas.
Quis o destino
(na verdade a sua idade), que ela fosse a primeira a dar um salto cem vezes maior
que o seu tamanho. Ao cabo de alguns anos foi a minha vez e depois a da minha
irmã mais nova. Um por um abandonámos o nosso balde. Abandonámos uma ilha que
para nós já não era misteriosa nem infinita. Para nós, que dávamos aquele salto
cem vezes maior do que o nosso tamanho, a sensação era maravilhosa. Tal como os
jovens sapos do balde fundo, trocávamos um mundo que já conhecíamos bem e que
já não satisfazia as nossas aspirações por algo perfeitamente desconhecido. Partíamos
para uma nova realidade e para um mundo grande que encerrava muitos mistérios. Lá,
no novo mundo, poderíamos reinventar-nos e moldar a nossa vida como fizéramos antes
com as construções na areia. Mas para a nossa mãe e para o nosso pai que
ficavam para trás no seu mundo corriqueiro, a sensação era desoladora. Era certo
que ficavam profundamente orgulhosos e que se despediam de nós com dezenas de sorrisos
e incentivos. Mas conforme cada um de nós subiu lentamente as escadas rolantes
do aeroporto da nossa ilha para a área de embarque, podemos ver entre cada
aceno e desejo de boa fortuna um ar variegado de angústia e incomportável saudade,
ar de quem sabia que nada voltaria a ser o mesmo e que aqueles que agora
saltavam para fora do balde, embora fossem voltar muitas vezes para visitá-lo,
nunca mais voltariam para viver nele, porquanto doravante o seu mundo era consideravelmente
maior do que aquele. Cada um de nós sentiu a sua despedida como um murro no
estômago, mas nenhum de nós sentiu um murro tão devastador como o que os nossos
pais sentiram por três vezes. Nunca será fácil descrever tamanha sensação e nunca
se repetirá.
O nosso mundo
abriu-se num salto cem vezes, mil vezes, dez mil vezes maior do que o nosso
tamanho e começámos a perceber que o mundo, embora não seja de construções de
areia, está em constante renovação e que sempre rui para dar lugar a coisas
novas. A nossa metamorfose concluiu-se e a nossa grande ambição é que o mundo nunca
fique pequeno de mais e que tenha sempre mistérios e oportunidades. Mas a vida é difícil.
O nosso país enfrenta tempos complicados e o próprio mundo, não obstante a sua
dimensão e pluralidade, parece embrenhado em vícios, disputas e acusações que
não têm fim. Tudo o que há-de vir para a frente permanece incógnito, como tem
que ser. O nosso desejo é que o que quer que venha nos permita sempre construir
coisas. Que nos permita ser donos desse pequeno mundo construído, que ditemos
as suas regras e que, num devaneio ou num rasgo de inconcebível lucidez, o
habitemos com os seres que a nossa cabeça inventa. O nosso desejo é que o que
quer que venha nos tolere baldes carregados de vida. Que, ao contrário dos
jovens sapos que em tempos tivéramos, nos consinta voltar sempre à casa ao pé
da ribeira, ao quintal resguardado pela sombra da anoneira e ao corgo sob a
ponte feia onde fomos crianças inocentes que tinham um mundo que cabia na palma
da sua mão. O nosso desejo é que o que quer que venha nos ajude a regressar sempre
à casa ao pé da ribeira, por mais que pequeno tempo, e que cada regresso diminua
o aperto daqueles que ficaram no balde e que se calhar não deram o seu salto
cem vezes maior que o seu tamanho para que nós pudéssemos. É este o grande ciclo
das coisas. E se não for, ou se não tem sido, façamo-lo ser.