domingo, 24 de abril de 2016

O grande ciclo das coisas

Quando era criança, eu e a minha irmã mais nova gostávamos de brincar a inventar castelos e percursos de água na areia preta do quintal que o nosso pai um dia improvisara com o material que lhe restava das construções que fazia por profissão. À volta de uma velha e frondosa anoneira que nos brindava com uma plácida sombra em dias de muito calor, construíamos trilhos com engenho e destreza, erguendo pontes e abrindo lagos largos que imitavam a nossa imaginação do mundo. Com os nossos próprios dedos, sem cansaço ou aversão, moldávamos todo o quintal à nossa maneira. Quando os trilhos estavam prontos depois de um dia inteiro de trabalheira, de roupa suja e de muita areia presa nas unhas, puxávamos a água da mangueira e víamos com maravilhamento o mundo que criáramos ganhar vida. Não havia maior satisfação do que aquela. Naquele momento eramos todo-poderosos. Eramos donos do mundo. Daquele pequeno mundo de frágil areia. Era só nosso e eramos nós quem ditava as suas regras. Naquele pequeno mundo habitariam todos os pequenos seres que a nossa cabeça inventariava. Talvez ali vivessem elfos e fadas. Talvez vivessem pequenos homens que desciam o trilho de água brava em jangadas de folhas de anoneiras; construíam casas e castelos, aldeias e cidades e prósperas sociedades que caberiam numa algibeira. Ao entardecer a brincadeira terminava. A nossa mãe surgia para cortar a água e, com as mãos nas ancas na sua famigerada posse de autoridade, para nos dar lições sobre custos e desperdícios. Era mais uma lengalenga que pouco nos consumia e lá desfazíamos imediatamente o nosso pequeno mundo de areia. Fazíamos ruir as pontes e cobríamos os lagos. Mas não ficávamos tristes, porquanto no dia seguinte daríamos novamente vida a um novo empreendimento. Era o ciclo das coisas. Aprendemos logo. Aprendemos ali que tudo o que era construído haveria de ruir um dia para dar lugar a coisas novas. Era mesmo assim que era e que seria para sempre enquanto os homens caminhassem na terra. Era o que toda a gente nos dizia. E o nosso pequeno mundo de areia mostrava-nos, nas suas diferentes existências, que era mesmo assim.

As nossas brincadeiras não eram só construções de areia. Às vezes íamos em carreiras de saudável rivalidade para debaixo de uma ponte feia que ficava perto de casa. O corgo, chamávamos-lhe. Ali acocorávamo-nos à beira de um ribeiro que nascia algures na serra de loureiros, tintureiros e acácias. Com considerável paciência, ficávamos entretidos durante um par de horas a apanhar girinos com baldes e com as próprias mãos. Por vezes, e porque era mais interessante e francamente mais fácil, apanhávamos a forma ainda embrionária destes futuros batráquios e colocávamos em casa em baldes fundos com água e lodo da própria ribeira. Todas as manhãs íamos logo ver como tudo estava. Era a primeira coisa que fazíamos, mesmo antes de nos sentarmos para o pequeno-almoço de copos de leite e deliciosas douradas. Os ovos minúsculos e translúcidos dos batráquios abriam-se ao cabo de um ou duas semanas e os girinos ziguezagueavam para fora. A primeira coisa que os recém-nascidos faziam era conhecer todo o mundo que os acolhia e que não era mais do que um balde fundo e opaco. Talvez na sua pequeneza vissem o mundo como algo misterioso e infinito, com as suas fantasias e os seus segredos. Desconheceriam provavelmente que afinal não passavam de uma experiência e da folia de duas crianças igualmente inocentes, sem maldade, quiçá também elas dentro de um balde de rochas e imponentes montanhas que era a bela ilha em que viviam. Para aqueles girinos e para aquelas crianças, o mundo encerrava enigmas grandiosos. Ao fim de alguns dias, os girinos começavam a mostrar sinais do seu rápido desenvolvimento. Primeiro surgiam as patas de trás, de início duas dependências ansiformes de aparência inútil que um dia se transformariam em duas robustas patas posteriores que confeririam a estes pequenos seres o poder de saltar quase cem vezes o seu tamanho. Depois as suas vistosas caudas encolhiam e surgiam as patas anteriores. Por fim, a cauda desaparecia completamente e os girinos completavam a sua metamorfose. Eram jovens sapos e o balde que tinha sido o seu mundo inteiro durante toda a sua vida já não tinha mistérios nenhuns nem era infinito. Era pequeno para os seus ensejos. Por mais que tentássemos mantê-los no seu balde-mundo, cobrindo-o com lonas ou com as redes vermelhas de sacas de batatas, os jovens sapos saltavam sempre para fora. Mais tarde ou mais cedo saltavam quase cem vezes o seu tamanho para descobrir uma nova realidade, para alargar as fronteiras do seu mundo e fazer cumprir as suas aspirações. Na verdade, não iam para muito longe. Ficavam-se pelo ribeiro que corria mesmo ao lado da nossa casa, mas para quem em toda a sua existência só tinha conhecido um balde fundo era uma mudança monstruosa. Os jovens sapos ficavam a coaxar pelas noites fora, enquanto faziam a sua vida e as suas escolhas. Nenhum deles alguma vez regressou. Ficávamos sempre tristes, eu e a minha irmã mais nova. Depois de tanta dedicação nossa, os jovens sapos tinham ido embora sem hesitar. A nossa irmã mais velha, que diferenciava de nós alguns anos de idade, chegava das suas tardes com cafés e amizades a tempo de nos acalmar. Ela, que era mais sapiente, que entrevia um mundo maior e que já tinha passado por todos os nossos dissabores, fazia-nos ver que era mesmo assim. Era o ciclo das coisas.

Quis o destino (na verdade a sua idade), que ela fosse a primeira a dar um salto cem vezes maior que o seu tamanho. Ao cabo de alguns anos foi a minha vez e depois a da minha irmã mais nova. Um por um abandonámos o nosso balde. Abandonámos uma ilha que para nós já não era misteriosa nem infinita. Para nós, que dávamos aquele salto cem vezes maior do que o nosso tamanho, a sensação era maravilhosa. Tal como os jovens sapos do balde fundo, trocávamos um mundo que já conhecíamos bem e que já não satisfazia as nossas aspirações por algo perfeitamente desconhecido. Partíamos para uma nova realidade e para um mundo grande que encerrava muitos mistérios. Lá, no novo mundo, poderíamos reinventar-nos e moldar a nossa vida como fizéramos antes com as construções na areia. Mas para a nossa mãe e para o nosso pai que ficavam para trás no seu mundo corriqueiro, a sensação era desoladora. Era certo que ficavam profundamente orgulhosos e que se despediam de nós com dezenas de sorrisos e incentivos. Mas conforme cada um de nós subiu lentamente as escadas rolantes do aeroporto da nossa ilha para a área de embarque, podemos ver entre cada aceno e desejo de boa fortuna um ar variegado de angústia e incomportável saudade, ar de quem sabia que nada voltaria a ser o mesmo e que aqueles que agora saltavam para fora do balde, embora fossem voltar muitas vezes para visitá-lo, nunca mais voltariam para viver nele, porquanto doravante o seu mundo era consideravelmente maior do que aquele. Cada um de nós sentiu a sua despedida como um murro no estômago, mas nenhum de nós sentiu um murro tão devastador como o que os nossos pais sentiram por três vezes. Nunca será fácil descrever tamanha sensação e nunca se repetirá.


O nosso mundo abriu-se num salto cem vezes, mil vezes, dez mil vezes maior do que o nosso tamanho e começámos a perceber que o mundo, embora não seja de construções de areia, está em constante renovação e que sempre rui para dar lugar a coisas novas. A nossa metamorfose concluiu-se e a nossa grande ambição é que o mundo nunca fique pequeno de mais e que tenha sempre mistérios e oportunidades. Mas a vida é difícil. O nosso país enfrenta tempos complicados e o próprio mundo, não obstante a sua dimensão e pluralidade, parece embrenhado em vícios, disputas e acusações que não têm fim. Tudo o que há-de vir para a frente permanece incógnito, como tem que ser. O nosso desejo é que o que quer que venha nos permita sempre construir coisas. Que nos permita ser donos desse pequeno mundo construído, que ditemos as suas regras e que, num devaneio ou num rasgo de inconcebível lucidez, o habitemos com os seres que a nossa cabeça inventa. O nosso desejo é que o que quer que venha nos tolere baldes carregados de vida. Que, ao contrário dos jovens sapos que em tempos tivéramos, nos consinta voltar sempre à casa ao pé da ribeira, ao quintal resguardado pela sombra da anoneira e ao corgo sob a ponte feia onde fomos crianças inocentes que tinham um mundo que cabia na palma da sua mão. O nosso desejo é que o que quer que venha nos ajude a regressar sempre à casa ao pé da ribeira, por mais que pequeno tempo, e que cada regresso diminua o aperto daqueles que ficaram no balde e que se calhar não deram o seu salto cem vezes maior que o seu tamanho para que nós pudéssemos. É este o grande ciclo das coisas. E se não for, ou se não tem sido, façamo-lo ser.